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A revolta social se apropriando do espaço público

Os Mapuches sofreram violentamente com domínio do Império Espanhol (mesmo conquistando autonomia do território no período colonial, até 1881) e depois, com a independência, pela oligarquia conservadora apoiada pela Igreja Católica. Processo que produziu roubo do território, extermínio, e também, muitos símbolos, mitos e heróis, não desse povo que resiste e insiste em lutar pelo que te pertence, mas dos colonizadores brancos.

Os levantes recentes ocorridos no Chile (2019-2020) que teve como gatilho protestos contra o aumento das tarifas do transporte público, produziu diversos ataques contra o que se considera patrimônios públicos/nacionais tais como igrejas, bustos, esculturas e monumentos diversos. Segundo as autoridades chilenas, no total foram 329 monumentos danificados.

Mas afinal, o que são esses patrimônios públicos? O que simbolizam? O que dizem? É correto depredar patrimônios?

Se apresentarmos essas informações para uma pessoa, sem nenhuma reflexão mais aprofundada sobre o assunto, certamente a impressão que produziria não seria das melhores. Provavelmente concluiria que os protestos no Chile, com esse resultado, não passam de uma baderna generalizada, geradas por pessoas desocupadas que não têm nenhuma preocupação com o social e com a coisa pública, sendo eles terroristas e criminosos.

Acontece que os protestos insurrecionais quando revolucionários além de reivindicarem pautas de economia e política, que vão desde a rejeição do aumento da tarifa do metrô até a contestação do modelo político-econômico—como é o caso atual do Chile—tendem também a questionar as narrativas históricas e representatividades de personagens históricos tais como o rei, representantes da Igreja, militares, exploradores, políticos, etc.

Então você pode me perguntar, ou se perguntar: mas o que as narrativas históricas e o patrimônio nacional tem a ver com os protestos hoje? E eu te digo: tudo! Ora, como você pensa que o estado-nação e o roubo capitalista se reproduzem? Além do monopólio da violência, do sistema jurídico, do sistema escolar e da mídia, existe o monopólio da escrita da história e a construção da memória nacional que historicamente serviu como instrumento de dominação e coerção dos povos e da classe oprimida. A história e memória que se expressam também nos patrimônios públicos, como monumentos, são estratégicos no processo de dominação.

Uma parte considerável do Patrimônio histórico cultural, ainda hoje, reafirma simbolicamente a hegemonia cultural da classe dominante. No caso das esculturas e monumentos históricos, o grande alvo dos protestos—em geral, presente em espaços públicos como praças e parques—homenageiam algum acontecimento histórico ou alguma figura pública como de um grande político, militar, sacerdote, barão, etc. A narrativa/ideia que essas estruturas suportam é que estes representam a história de uma nação, um povo, uma sociedade homogênea e pacifica. Portanto, devemos celebrar, cultuar, respeitar, e por fim, preservar. Tens aí o discurso do Patrimônio Nacional.

Sim, é inegável que eventos e personagens históricos fazem parte da biografia de uma certa sociedade, seja ela formada com ou sem sangue. Contudo, as pessoas que decidem pela construção desses monumentos não buscam contar e fazem o possível para ocultar é que esses acontecimentos e personagens históricos, os quais constituem a história e memória da nação, em geral, foram produzidos na base do roubo, exploração, imposição, subjugação, extermínio sistemático de nativos, e povos retirados de suas terras.

Nesse sentido, por não retratarem a história de forma cuidadosa e honesta com os fatos, optando por dar ênfase em partes da história a que convém, que esses Monumentos exercem uma violência denominada de violência simbólica perante esses povos e comunidades que sofreram direta ou indiretamente com determinados acontecimentos e processos históricos, via de regra comandada por homens brancos.

A violência simbólica como instrumento no processo de dominação faz parte da história de todos os povos que sofreram/sofrem com a colonização. No território compreendido hoje como Chile vive o povo originário Mapuche, palavra que significa “gente da terra”. Os Mapuches sofreram violentamente com domínio do Império Espanhol (mesmo conquistando autonomia do território no período colonial, até 1881) e depois, com a independência, pela oligarquia conservadora apoiada pela Igreja Católica. Processo que produziu roubo do território, extermínio, e também, muitos símbolos, mitos e heróis, não desse povo que resiste e insiste em lutar pelo que te pertence, mas dos colonizadores brancos.

Nesse contexto, após anos de experimento do neoliberalismo em solo chileno, o povo foi às ruas se manifestar e se opor às políticas neoliberais do Estado que escraviza e mata o povo Mapuche em seus territórios e pessoas trabalhadoras no campo e centros urbanos. Com ação direta do povo nas ruas criou-se o ambiente favorável para questionar o poder estabelecido em suas diversas formas e representações.

Durante os protestos, foram feitos diversos ataques a símbolos nacionais em diversos lugares, em especial Santiago—o epicentro das mobilizações—em praças, parques, nos espaços públicos. As contestações tiveram como foco esculturas e monumentos históricos de exploradores, militares, políticos, representantes da igreja, entre os quais foram responsáveis direta ou indiretamente pela colonização, extermínio, exploração e dominação do povo Mapuche, como também da classe trabalhadora (enormemente mestiça). Um exemplo dessa ação direta foi a substituição do monumento em homenagem ao explorador espanhol Francisco de Aguirre e em seu lugar instalaram a escultura Milanka, em homenagem à mulher da cultura indígena diaguita.

Esse caso expressa nitidamente a rejeição do que o estado e as instituições oficiais de salvaguarda do patrimônio cultural consideram e difundem como patrimônio e representativo do povo. Com essa e outras ações, o povo chileno, em plena revolta social, se apropria do espaço público, dão o verdadeiro significado para as esculturas e monumentos históricos. Fazem isso depredando, rabiscando, pichando, substituindo por outro.

Foto: Susana Hidalgo

Se a essa altura você não conseguiu entender a atitude do povo chileno, então pense o seguinte: uma pessoa assassina um familiar seu (por qualquer motivo que seja), ela não é responsabilizada, tão pouco se arrepende do que fez; anos se passam e você se depara com um monumento homenageando essa mesma pessoa responsável pela morte de seu ante querido. Vamos mais a fundo! Pense que essa pessoa não somente matou seu parente, matou também uma parte significativa (mãe, tia, avó) e, além disso, mantém outra parte de sua família refém, sofrendo perseguições e sendo submissa de diversas formas por gerações. Então essa pessoa—responsável pelas mortes, e todos que estiveram justificando, legitimando e relativizando tais violências—são lembrados como seres humanos exemplares e de grande importância para a Nação, um símbolo nacional, um patrimônio, portanto digno de ser preservado. Pois bem, essa anedota realmente aconteceu e acontece, porém, com povos e comunidades inteiras. Isso ocorreu com América Latina, isso ocorre com o povo Mapuche.

Por fim, sem sombra de dúvidas, a luta de classes e dos povos também acontecem no campo da memória, portanto, para estes (e para mim) parece necessário questionar, tensionar e reagir contra esses símbolos do poder, da opressão seja ressignificando, evidenciando outras narrativas, e, se preciso, como uma supressão, atacando. Nessa perspectiva, a reação contra esses Monumentos, em um contexto de revolta, não se trata duma ação impensada, irracional, ou bárbara. Pelo contrário—significa responder de forma consciente, justa (dada as proporções e correlação de forças) e direta à violência histórica e atual exercida pelos donos do poder, sem esperar a boa vontade destes em pararem de oprimir, explorar, matar.

Amulepe taiñ weichan!

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texto: Almeida