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Reflexões vindas de dentro para fora. A escrita da raiva: por mais mundos possíveis!

Esquerda, direita; bem, mal;  fascista, anti-facista, racista, antirracista. Tudo isso precisa ser discutido, precisamos nos posicionar sim, mas o que está acontecendo é muito mais profundo, vai além de duas polaridades, de uma oposição binária…

Esquerda, direita; bem, mal;  fascista, anti-facista, racista, antirracista. Tudo isso precisa ser discutido, precisamos nos posicionar sim, mas o que está acontecendo é muito mais profundo, vai além de duas polaridades, de uma oposição binária…

Nós, brancos, somos educados a se achar grandes coisas, porque socialmente somos bem tratados e ouvidos. Quando comecei a andar pelo Norte do país, Amazônia, percebi mais forte como me tratavam bem e achavam que eu estava sempre certa. Lá, naquele canto do país, que na verdade é a maior região, a maior floresta ainda de pé, tão olhada, mas ainda não sentida. Lá onde a história de relação da maioria indígena com brancos foi com os missionários, com os patrões da borracha, mineradores, agora também com ONGs, sempre estabelecida de um jeito desigual, controlada por eles, ou será por nós?

Para manter isso, educa-se na ilusão de que os brancos merecem mesmo, sabem mais, porque são melhores, mais estudados… quanta ilusão! E mesmo quando estão na mesma posição de trabalho ou casados com indígenas, é exaltado aquilo que estruturalmente é mais valorizado, fazendo o indígena virar branco, caboclo, mais civilizado…. E assim a estrutura vai forçando a esquecer a ancestralidade, aquela mais vital, a dessa terra….

E assim acontece…. Lembro quando eu era jovenzinha, às vezes saía para o rolê, acabava gastando toda a grana e ficava sem na hora de voltar para casa, então pedia para passar por debaixo da catraca do busão, sempre permitiam… Certa vez até cheguei a ouvir que eu era muito bonita para me arrastar no chão, podia descer pela frente.

Enquanto isso Cláudia, mulher preta, estava sendo arrastada no chão pelo carro de polícia e todos assistiam sem comoção, nada foi feito…

Essa estrutura está muito enraizada e vai além de movimentos que são como ondas: vem, estouram e depois somem, dissipam-se no oceano, nesse mar sem fim e sem direção das redes sociais… Mas onde as raízes ainda estão fincadas no chão, as lógicas são outras, se movimenta para fortalecer aquilo que querem arrancar…

Desde a década de 80 o movimento indígena nacional, tendo uma das lideranças Ailton Krenak, vem reivindicando serem reconhecidos como NAÇÕES INDÍGENAS, exatamente porque vivem em outros sistemas de vida, com regras próprias, com seus jeitos de fazer política, de conhecer, habitar este mundo diverso e múltiplo, sempre em movimento.

A consciência do caminhar existe porque se pisa no chão sabendo dos caminhos já trilhados, porém também esburacados, impedidos, mas sempre aprendendo a tapar esses buracos, a abrir novas trilhas….

A estrutura moldada pela colonização, a mesma que formou o Estado-nação brasileiro sob interesse dos oligarcas e gringos brancos, esses que comandam a festa toda – e não a festa ritual, mas aquela em que quem se diverte é quem paga – reduz governança a modelos políticos da modernidade europeia, esse mesmo pensamento moderno que opôs o Outro criando as raças:“gritaram-me negra” (Victoria Santa Cruz); “índio eu não sou, não me chame de índio” (Márcia Kambeba)…

E assim, tudo o que é diferente deste padrão universalizado é pior, menor, por isso podem morrer, ser matado, afinal, só atrasam a corrida para o ouro, para o “progressio” (como diria Adorinan Barbosa), pois são criminosos, preguiçosos, merecedores do mal… Para né!

Por isso reafirmo, o que está em jogo é mais profundo, são mudanças, muitas presenças, vozes em espaços antes restritos, isso traz muitas visões, multiplica as referências, abala as estruturas…  Agora, precisamos saber ouvir, deixar isso penetrar em nós, em quem nós somos.

Não podemos dar vez para múmia que quer pegar novamente o chicote na mão e carregar as espingardas, jamais! Mas fico aqui pensando, quando que a ação do governo ou das instituições foi maior ou mais eficaz que a da autogestão? Da articulação comunitária? Da sabedoria aprendida em casa, na rua, na aldeia, na vivência cotidiana?

Assim, termino esse desabafo perguntando: quando vamos viver essas mudanças? Quando vamos expandir as nossas noções de verdade e modelos de vida? Vamos romper esse cimento que impede que nos aproximemos daquilo que está em nós, que pulsa nesta terra, na sabedoria espiritual que a existência nela e dos povos que dali pertencem nos transmitem. Quando vamos deixar brotar as raízes que realmente nos permitem crescer? Hein?

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Texto e ilustração: Ciça Veiga