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O Lugar das Mulheres nas Artes visuais

Os homens se mostram muito solícitos em falar por nós, em nos retratar em suas obras e nos colocar no patamar de musas, mas não suportam ler nosso próprio nome na parte inferior da tela.

Estive com muitas dúvidas quanto a escolha de um tema para este ensaio, tão vasta eram as possibilidades. Dois desses temas se tornaram muito marcantes, o primeiro traria a problemática dos perigos da história única, pensamento desenvolvido por Chimamanda Adichie, a partir do qual eu faria um estudo acerca do Acervo da Laje, espaço de memória, cujo principal mote é a recriação de uma história autônoma e orgulhosa de uma das regiões mais antigas da cidade de Salvador, o Subúrbio. O segundo tema, que eu escolhi me debruçar, traz questionamentos acerca do lugar da mulher no campo das artes, em específico das artes visuais, onde sua presença é sempre notada, mas do lado errado do quadro, ou pelo menos, do lado insuficiente: como objetos e não sujeitos de narrativas artísticas.

O que ambos os temas têm em comum é exatamente essa delimitação prévia do lugar onde cada corpo pode estar. Uma delimitação que precede até mesmo sua existência. O Acervo da Laje busca trazer uma consciência outra acerca dos personagens que fizeram e fazem parte da história do subúrbio, busca recontar histórias ouvidas tantas e tantas vezes acerca do que é arte – quem o faz, onde a encontramos – do que é cultura – quando ela passa a ser vadiagem – do que é beleza – quem tem e quem não pode sonhar em se achar bela.

Recriando narrativas e cartografias acerca da cidade e do mundo, encontramos questionamentos semelhante sobre as mulheres: existe arte feminina? Existiu grandes mulheres artistas? Existirá? A cultura feminina pode se dar fora do privado? A mulher bela pode descer do patamar de bibelô e propriedade do lar para se tornar uma criadora de vanguardas e possuir opiniões?

Entendendo quem sou, o que precede a materialidade do meu corpo, o meu presente, passado e futuro, decidi por seguir a linha acerca da presença feminina nas artes visuais. É importante ressaltar que neste ensaio constam muito mais perguntas do que respostas, mudei diversas vezes de sujeito de análise, e descobri que a questão é muito mais complexa do que parece. Se antes acreditava que podia tratar sobre invisibilidade, hoje percebo que só é possível falar sobre invisibilidadeS, devido às diversas declinações que o tema pode possuir.

O que sabemos da história e porque não houve grandes mulheres artistas

Em 2019, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) fez uma exposição dedicada às História das mulheres e às Histórias feministas, que foi dividida em duas mostras. A primeira, História das mulheres: artistas até 1900, teve curadoria de Julia Bryan-Wilson, Marina Leme e Lilia M. Schwarcz, onde elas elencaram um total de 50 mulheres artistas até 1900, além de expor as produções femininas de tecidos (com mesmo recorte histórico) dos Andes (América Pré-colombiana), Berbere (Egito), Grã-Bretanha, Pensilvânia (EUA), Punjab (Índia e atual Paquistão), Rabat (Marrocos), Santa Catarina (Brasil) e Yakan (Filipinas). A segunda mostra, Histórias feministas: artistas depois de 2000, teve a curadoria de Isabella Rjeille, e trouxe-nos 28 artistas feministas do período, além de expor a produção de dois coletivos do mesmo recorte histórico, o Daspu (Rio de Janeiro, BR) e o Serigrafistas Queer (Buenos Aires, ARG).

A exposição trazia como objetivo a atualização da narrativa tradicional das escolas de Belas Artes, através do levantamento e estudo da produção dessas mulheres, em sua maioria desconhecidas pelo grande público, especialmente as que compunham a coleção “antes de 1900”. É importante perceber a lacuna que a exposição estabeleceu entre os anos de 1900 e 2000, século dominado pelo modernismo, que de forma muito peculiar contou com mais artistas mulheres que homens, essa particularidade, porém, não será explorada neste ensaio.

Em 1971 a historiadora de arte e americana Linda Nochlin lançou um artigo intitulado Por que não houve grandes mulheres artistas?, que só veio a ser publicado e traduzido no Brasil em 2016. Aqui ela questiona a metodologia da história da arte e a construção de sua narrativa, baseada na criação do gênio criador. Ela declara que ao tentar responder a questão de “por que não houve grandes mulheres artistas”:

A primeira reação das feministas é morder a isca […] e tentar responder a questão tal qual ela é colocada, isto é, buscam encontrar exemplos de merecimento ou de artistas que ainda não foram suficientemente reconhecidas através da história […] engajam-se na atividade de especialista que deseja mostrar a importância do negligenciado ou do gênio menor. […]
(NOCHLIN, 2016, pg.3-4)

Tanto a exposição quanto o livro lançam luz sobre a produção das mulheres – o primeiro com uma extensa catalogação, e o segundo com a desconstrução de certos estereótipos da “arte feminina”, trazendo também alguns nomes de pintoras e escultoras que foram ofuscada por seus parceiros – trazendo para nós o questionamento de “Por que eu nunca ouvi falar delas antes?”, “Por que só nos vêm à cabeça (quando nos vem à cabeça) as artistas Tarsila do Amaral, Lygia Clark, Anita Malfatti e outras modernistas?”.

A pesquisadora de arte e jornalista brasileira, Karina Sérgio Gomes, conduz uma pesquisa sobre 54 artistas brasileiras em seu podcast Conversa sobre artes visuais, e levanta o questionamento de que, embora pesquise arte contemporânea há 10 anos, dentro desse projeto ela sente como se nunca tivesse estudado história da arte antes, a própria leitura da história se modifica quando você leva em consideração a produção feminina. Para exemplificar isso, ela traz a artista brasileira Georgina de Albuquerque (1885 – 1962), cujo maior desejo era se tornar uma grande artista e fazer uma pintura histórica. Embora tendo realizado esse último desejo no ano de 1922, momento em que fazer pintura histórica já não era tão prestigioso, ela pintou a tela “Sessão do Conselho de Estado” [Figura 1], trazendo uma leitura totalmente nova sobre a Independência do Brasil. O que chocou Gomes foi justamente que na pintura desse quadro ela trouxe um tema que nenhum artista homem se propôs a retratar, ela coloca em destaque a figura da Imperatriz Leopoldina discutindo a Independência do Brasil com José Bonifácio. Servindo como um contraponto para a pintura histórica “Independência ou Morte” de Pedro Américo de 1888 [Figura 2].

[Figura 1] Sessão do conselho de Estado, 1922. Georgina de Albuquerque. Fonte: Wiki Commons

[Figura 2] Independência ou morte, 1888. Pedro Américo. Fonte: Wiki

Essa atualização não nos choca tanto quando temos em mente a leitura do texto Os perigos da história única de Chimamanda Ngozi Adichie. Embora Adichie tenha trazido uma reflexão que diz mais respeito a culturas do que ao gênero, acredito que seja possível, salvo as devidas proporções, estabelecer uma análise com base nela. Pedro Américo foi um importante pintor acadêmico brasileiro, e como um bom cidadão alfabetizado daquela época, deve ter ouvido falar no grande papel que D. Pedro I exerceu na proclamação da independência do Brasil em 1822, mas também como um bom homem do século XIX, não deve ter questionado a totalidade desse protagonismo masculino. A exposição de um outro ponto de vista por Albuquerque, nos mostra que é possível abordar a história de inúmeras formas. O “olhar feminino” não se dá como um olhar maternal, ou afável, mas sim como um olhar de questionamento e exigência de novas possibilidades. Sobre o momento retratado, José Menck diz:

No movimento que culminou com a emancipação política do Reino do Brasil, Dona Maria Leopoldina […] assumiu a liderança encaminhando os passos de seu marido. Em agosto de 1822, ela ocupava a posição de regente do Reino do Brasil […]
Presidindo o Conselho de Estado, Dona Maria Leopoldina anuiu aos entendimentos do ministro e conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva […] e assinou missivas ao príncipe regente, Dom Pedro, aconselhando-o a romper definitivamente com Portugal.
(BRASIL, 2017, grifo meu)

Diante disso, vale a pena pensar, por que essa produção, que causou tanto impacto, é desconhecida? Que fenômeno é esse onde a produção artística feminina passa tão despercebida até para os olhos mais treinados das pesquisadoras de arte?

Guerrilla Girls e a exibição das relações de sujeito e objeto nas artes visuais

Em 2017, o MASP trouxe um exposição sobre a “questão feminina” um tanto quanto metalinguística, foi a mostra Guerrilla Girls: gráfica, 1985-2017. Guerrilla Girls é um coletivo feminista formado em 1985, oriundo dos Estados Unidos e constituído por ativistas anônimas, conhecidas por usar máscaras de gorila em suas aparições públicas, e que lutam por uma maior representatividade no mundo das artes. A exposição individual apresenta uma retrospectiva com 116 trabalhos do grupo, incluindo dois novos cartazes brasileiros, baseados nas obras mais conhecidas das Guerrilla Girls: “As vantagens de ser uma artista mulher” (1988/2017) e “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Met. Museum? (1989)”, atualizado para o contexto do MASP” [Figura 3]. Vamos falar um pouco sobre a segunda obra.

O questionamento levantado pela imagem do cartaz em destaque, junto com as estatísticas apresentadas retorna para nós o que foi levantado no início desse ensaio, a presença feminina é sempre notada nas artes visuais, mas como objetos e não sujeitos de narrativas artísticas. Os homens se mostram muito solícitos em falar por nós, em nos retratar em suas obras e nos colocar no patamar de musas, mas não suportam ler nosso próprio nome na parte inferior da tela.

[Figura 3] Fonte.

Essa relação “sujeito-objeto” é bastante explorada na obra de bell hooks Erguer a voz: Pensar como feminista, pensar como negra (2019), onde ela diz:

Como sujeitos, as pessoas têm o direito de definir sua própria realidade, estabelecer suas próprias identidades, nomear sua história. Como objetos, a sua realidade é definida por outros, a sua identidade é criada por outros, sua história somente é nomeada de maneiras que definem sua relação com aqueles que são sujeito.
(hooks, 2019, pg.100)

Relembrando o episódio da pintura histórica de Georgina de Albuquerque, e a atenção que ela deu ao papel da Imperatriz Leopoldina, entendemos que a história que nos é contada sobre episódios importantes para o país sempre omitem a figura feminina, os “sujeitos” (homens artísticos acadêmicos) que tomam para si o papel de retratar esse eventos, sempre tratam dos seus “objetos” (mulheres, negros ou indígenas) como seres inanimados, ou no máximo, como seres sem qualquer influência. Mas sempre que um “objeto” se propõe a tratar desses mesmos assuntos, milagrosamente se fazem nascer, ou mais realisticamente falando, se encontra, todo o elenco de “objetos” que fez parte desse processo.

O lugar de onde se observam esses eventos influenciam com muita força a questão que será trazida como principal. Nada pode nos garantir que a intenção de Albuquerque tenha sido feminista, é preciso ter muito cuidado ao inserir esse rótulo, muito provavelmente, ela nem estava pensando em sua pintura histórica como sendo uma insubordinação à história tradicional, mas, acredito que o fato dela ser mulher fez com que a luz brilhasse para um ponto diferente do palco de acontecimentos do ano de 1822. E esse é o grande benefício de se ter “objetos” no lugar de “sujeitos” para falar sobre si mesmos, a verdade se torna mais complexa.

Um exercício interessante de se fazer individualmente, é pensar como seria nossa compreensão de Brasil e de política, se aprendêssemos sobre as duas pinturas dentro da aula de história. Será que demoraríamos tanto em eleger uma presidenta mulher?

As estatísticas do MASP, e de outros espaços institucionais explorados nas obras de Guerrilla Girls, confirmam as reflexões de hooks e me fazem questionar como seria minha compreensão de arte se esses números não fossem tão díspares. O que isso reverbera nas artistas de hoje? Como formar mulheres, cujo referencial teórico mais distante de representatividade na arte está no século XX (com o modernismo), em comparação aos homens que têm referenciais que vão desde o séc. XII a.e.c (com a arte grega), até hoje, 2019 d.e.c? O problema educacional na arte foi explorado por Nochlin em seu artigo, onde ela levanta o véu da história e nos mostra que:

[…] a culpa não está nos astros, em nossos hormônios, nos nossos ciclos menstruais ou em nosso vazio interior, mas sim em nossas instituições e em nossa educação, entendida como tudo que acontece no momento em que entramos nesse mundo cheio de significados, símbolos, signos e sinais. […]
(NOCHLIN, 2016, pg.8-9)

Quando nasce em nós, mulheres, o desejo de ser mais do que propriedades do lar, surge também a dúvida de se é possível alcançar outros espaços. A completa devoção profissional era algo completamente fora da realidade, especialmente para muitas artistas mulheres que conseguiram exercer a profissão antes dos anos 1900. Isso era ocasionado pelo tipo de expectativa ou demanda imposta às mulheres (NOCHLIN, 2016) que tinham de abandonar suas carreiras quando casavam ou tinham filhos, o que jamais precisou acontecer com um homem. Adentrar espaços de galerias, museus, aulas de história da arte ou mesmo livros é uma tarefa bastante angustiante, especialmente quando sabemos que houve mulheres artistas e que seus sacrifícios foram imensos, assim como sua rejeição.

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texto: Janayna Araujo

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REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda. O Perigo da História Única. Vídeo da palestra da escritora nigeriana no evento Technology, Entertainment and Design (TEDGlobal 2009). Disponível em aqui.

AS GUERRILLA GIRLS CHEGARAM! Exposição no Masp faz retrospectiva do coletivo feminista. MASP, 2017. Disponível aqui.

BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Imperatriz Leopoldina: Dona Leopoldina e sua atuação política. 2017. Disponível aqui.

GUERRILLA GIRLS: GRÁFICA, 1985-2017. SP-ARTE, 2017. Disponível aqui.

HOOKS, bell. Erguer a voz: Pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019

LEME, Mariana; PEDROSA, Adriano; RJEILLE, Isabella (Org.). História das mulheres, Histórias feministas. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 2019. Catálogo de exposição, 23 Ago. – 17 Nov. 2019, MASP.

NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas?. São Paulo: Edições Aurora, 2016

#17: Existe arte feminina?. Locução de: Karina Sérgio Gomes.

Conversa sobre artes visuais, 04 set. 2019. Podcast. Disponível aqui.