O que sinto é uma tristeza, mas não é desesperada. É meio vexada e inconspícua. É mesmo uma espécie de “medo” com pesar; um atravessamento de pequenos fragmentos de lembranças, da imagem de alguém que acabara de morrer. Quando o conheci ele era pintor, mas fora morto pela polícia como traficante; de lá para cá foram menos de cinco anos, o bastante para uma grande guinada na vida, agora morte, do rapaz.
Ele andava sempre com um cheiro muito forte, um odor facilmente identificável de fumante. Nem por isso, e pelos comentários alheios, valia discriminá-lo; quem em sã consciência não é viciado em alguma coisa?
Não me parece nada digno afastar-se e julgar as pessoas pelas imposições do “destino”. Em verdade cabe – conforme nossas leis, só à própria organização social conceber o que é certo e o que deve ser marginalizado. O problema é que a constituição do corpo social delega, a corpos como o do pintor, um status de crime a priori. E isso não me traz nenhum conforto; saber que meu “vizinho” de bairro fora morto pela polícia por vender produtos que causam mal a vida dos outros, ora! Se é assim que vamos agir, então fechemos os bares, as sorveterias, os supermercados…
Não é nenhum exagero ou vitimismo afirmar que o pintor fora relegado a esse trabalho de traficante. Ele tinha uma ótima profissão, mas que já não lhe sustentava como a segunda.
O mais curioso é que parece tão óbvio que esta guerra é insana. Me parece tão simples de resolver. A legalização parece o melhor caminho para acabar com essa condenação inerente ao próprio conceito. Não parece nada sensato condenar alguém, com uma saraivada de tiros, por tentar superar pelo caminho do tráfico as condições que lhe foram impostas pelo modo de (des)organização social, pelo contrato que supõe uma equanimidade ainda longe de existir. Vejo a luta do pintor com mais vigor do que as dos que o condenam.
Triste saber que as paredes de sua casa foram pintadas de vermelho, por meio de um trabalho nada profissional, tampouco artístico.
Entendam como quiserem. Eu vejo como um pintor a menos na sociedade; outros veem como um bandido a menos, como um a menos na composição da corja que aterroriza as famílias. Não vejo sentido nessas condenações… Por que, ao invés de condenarmos, não nos questionamos o que leva um pintor a se tornar um traficante? Sabendo as possíveis mudanças em sua vida e as poucas oportunidades que lhe apareceram nesse processo, também você não se arriscaria para sobreviver? A vida em si é possibilidade.
E se valorizassem mais os profissionais, se investissem mais no que há de bom – e não na guerra? Como será que a sociedade se comporia neste cenário? Será que teríamos mais pintores vivos ou mais traficantes mortos? Traficantes são pessoas que escolheram um caminho mais arriscado (e não “mais fácil”), por isso fico entristecido. Vejo mais sangue derramado, mais um jovem assassinado e não mais uma batalha vencida pelo bem.
Nossos valores estão invertidos. Não é matando que vamos construir uma sociedade melhor, não me parece ser este um bom caminho!
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Texto: Paulo Freire