Sônia Guajajara
Ailton Krenak
Samara Pataxó
Celia Xakriaba
O que todos esses nomes tem em comum, além de pertencerem a pessoas valentes do movimento indígena?
Podemos notar, em todos esses casos, que o nome do povo ao qual cada uma dessas pessoas pertencem aparece como segundo nome. É importante dizer, acima de tudo, que isso não acontece por acaso, sendo muito comum percebermos que o mesmo ocorre em relação a outros indivíduos pertencentes aos povos originários.
A primeira afirmação que bem descreve essa prática é a de que isso ocorre em resposta ao estereótipo racial existente na mentalidade da população brasileira. A demarcação da origem étnica no nome de cada indivíduo surge para confrontar uma realidade que nos apresenta como “os outros”, no sentido de uma categoria específica da sociedade que se diferencia da população brasileira. Essa diferenciação não se dá pelas características culturais, mas sim, pelas noções preconceituosas que estruturam o entendimento sobre os povos tradicionais indígenas no nosso país.
Nomear, é uma forma de combater o discurso reducionista, que sistematicamente coloca todos os povos em uma única categoria descritiva. O combate acaba sendo travado com certo teor de naturalidade – por meio da naturalização do uso de nomes que historicamente foram estigmatizados e postos em posição de depreciação, porém sem a carga pejorativa que lhes eram atribuídas – apropriando-se desses termos que já nos são próprios, para reafirmar os elementos positivos existentes dentro de cada cultura.
A demarcação da origem étnica no nome de cada indivíduo se faz necessário em relação ao outro. Afinal, não ocorrem casos em meio a comunidade à qual pertenço, de situações nas quais indivíduos do meu povo se apresentem como Pataxó, uns em relação aos outros, a única informação que acaba sendo apresentada é a comunidade de origem desses indivíduos, pois é comum em alguns casos existirem mais de uma comunidade indígena compartilhando as mesmas características culturais.
Nomear é também significar. Assim, dizer ser Guajajara, Tupinambá, Pataxó, Krenak, Tikuna, etc., é evidenciar que não somos índios. Ao depender de como o indivíduo enxerga a própria realidade, é também afirmar que se quer, este, pertence à categoria indígenas. Se eu digo de qual povo sou, imediatamente se exclui a necessidade de me colocar dentro de uma categoria descritiva. Não existe a necessidade de me enquadrar em uma categorização que erroneamente dispõe de elementos descritivos não fidedignos com a realidade.
Portanto, ao evidenciar o nome do povo os indivíduos não estão apenas confrontando o estereótipo, estão acima de qualquer coisa se posicionando enquanto subjetividade, demarcando sua/uma identidade.
Gosto de pensar esse segundo nome como um sobrenome mesmo. Gosto de pensar o quão interessante seria todos os indivíduos indígenas terem em seus registros de nascimento o nome de seu povo. Ao invés de perpetuarmos “nomes de famílias” que no geral remontam ao período da escravidão, poderíamos pôr em evidencia, nesse lugar, nomes de comunidades ou de povos. Refletir em uma escala individual as interações entre os indivíduos de diferentes povos, facilitando a construção de uma árvore, cujos sobrenomes deixarão de ser compostos por Silvas e Santos para se tornarem Pataxó, Maxakali, Guajajara, etc.
Por que não criarmos sobrenomes para nossas famílias ou um grupo inteiro de indivíduos utilizando como base o nosso referencial cultural? Noto que desde o ponto de vista institucional por meio da Resolução Conjunta n° 3/2012 do CNJ (Concelho Nacional de Justiça), até o âmbito dos costumes que decorre de uma prática de auto identificação, essa realidade aos poucos tem sido alcançada.
Entende-se, portanto, que dizer “eu sou Pataxó” significa basicamente que eu sou Pataxó e ponto. A partir disso, podemos conversar e conhecer uma/um a realidade da/o outra/o.
Existe também uma necessidade interna dos povos indígenas de estabelecerem um diálogo entre si. Eu me posicionar enquanto Pàkây Pataxó disponibiliza uma gama de símbolos e significados para um parente de outro povo, facilitando nossa interação e respeitando, inclusive, as especificidades culturais de cada um.
Ao apresentarmos o debate sobre o respeito à diversidade cultural, o fazemos lastreados por uma prática comum no interior de nossas interações intersubjetivas de socialização.
Em boa parte das conversas que tive – com pessoas dos mais diversos povos dentro do movimento indígena – em manifestações e atos, a principal questão que surge no início de qualquer conversa é “de qual povo você é?”, caso tal termo não esteja em evidência no ato de se apresentar. Antes de falar com o indivíduo falamos com seu povo, no sentido de compreender que ao depender do distanciamento cultural, a forma de comunicação deve se adequar aos símbolos e significados da realidade à qual pertence o parente. Isso, todavia, não pressupõe um conhecimento prévio de todas as culturas existentes.
Saber sobre qual povo certo indivíduo pertence, nos possibilita compreender alguns elementos importantes na construção subjetiva dessa pessoa. O idioma, a religião e o fator geográfico, que nos ajuda a compreender a resistência, as opressões e as histórias dos povos, são exemplos disso. Além do mais, saber sobre o povo nos permite, também, compreender o que não sabemos sobre esse indivíduo, colaborando para não levarmos nossas compreensões e concepções acerca da nossa realidade como representação de uma verdade absoluta.
Apesar de todos os elementos que foram mencionados até o momento existe um último, mas não menos importante. Trata-se da liberdade e autonomia do indivíduo de escolher o próprio nome pelo único motivo dessa pessoa desejar.
Historicamente vários direitos foram negados aos povos originários em um plano institucional, e a forma com que os indivíduos podiam se denominar levava em consideração os elementos culturais da cosmovisão judaico-cristã, apresentando mais uma das várias supressões das liberdades dos povos originários. A escolha do nome tinha que seguir regras de nomeação, afinal, nomear a realidade e as coisas é uma das várias maneiras de se estruturar uma lógica de dominação social. Não muito diferente do que foi a proibição do uso das línguas originários imposta aos povos indígenas.
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Texto e Ilustração: Pàkây Pataxó