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Como os militares recuperaram um protagonismo no Poder

A introdução de militares em assuntos civis pode gerar uma ideologização da instituição. É motivo de preocupação — de muita preocupação — quando a instituição que é responsável pelo monopólio da força torna-se partidária, ou se vê como parte ativa do governo e da gestão doméstica.

Segundo o levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), há atualmente na gestão de Bolsonaro 6.157 militares ocupando cargos no Poder Executivo. O levantamento foi realizado em junho, e seu propósito era corroborar a percepção geral de que haveria uma militarização dentro dos cargos executivos, o que foi comprovado. O aumento é expressivo comparado com os números da gestão anterior, de Michel Temer, que apenas contava com a contribuição de 2.765 militares. Assim, percebemos uma volta dos militares dentro do jogo de poder político, com a instituição cada vez mais atrelada a assuntos civis.

Um mês antes de serem divulgados os dados coletados pelo TCU, o debate sobre o papel dos militares dentro do governo havia emergido nos Estados Unidos, logo após o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, Mark Milley, posar em uma foto com o presidente Donald Trump em uma caminhada para a igreja, depois de um dispersar violento pela polícia contra manifestantes que estavam “no meio” desse trajeto presidencial. O caso foi levado com bastante seriedade pela mídia e pela população estadunidense, exigindo uma resposta para o que parecia inaceitável. Por parecer envolvido com a situação, Milley foi a público com a seguinte declaração:

“Eu não deveria estar lá. Minha presença causou a impressão de que os militares estão envolvidos com a política doméstica. (…) Precisamos honrar um princípio essencial da república: o de que as forças armadas não são políticas.” (Jornal Nacional)

Não cabe, nesse artigo, discutir a ‘falta de política’ em uma instituição como as Forças Armadas dos Estados Unidos, como talvez a instituição mais assassina da atualidade. Mas, pelo menos no que diz respeito a assuntos internos, os militares ainda se mantêm fora da gestão governamental interna. Nesse aspecto, sendo Bolsonaro fã de carteirinha dos Estados Unidos, acho estranho como esse é um assunto em que o presidente parece não querer copiar a “maior democracia do mundo,” como ele gosta de dizer. Assim como parte de seu eleitorado, que parece regozijar de alegria toda vez que mais um militar é aceito para um cargo público.

A militarização progressiva em cargos de governo, parece algo que a população ativamente apoia, pelo menos no que concerne o eleitorado de Bolsonaro. No entanto, essa crescente presença vem alarmando outras instituições e pesquisadores.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luis Roberto Barroso, afirmou em junho, também um mês antes de sair os dados do TCU, que “não existe” dizer que os militares “estão no governo.” Mesmo assim, apesar de ‘não poder existir’ essa possibilidade, os próprios órgãos governamentais investigaram com base nesse pressuposto, já que a realidade parecia cada vez mais distante de honrar esse “princípio essencial da república.”

A introdução de militares em assuntos civis pode gerar uma ideologização da instituição. É motivo de preocupação — de muita preocupação — quando a instituição que é responsável pelo monopólio da força torna-se partidária, ou se vê como parte ativa do governo e da gestão doméstica.

Em relação a militarização crescente no governo, autoridades jurídicas e especialistas agora afirmam o inevitável:

“Quando você multiplica militares no governo, eles começam a se identificar como governo e começam a se identificar com vantagens e com privilégios. E isso é um desastre.” (Luis Roberto Barroso, ministro do STF)

“Já é problemático ter vários militares da reserva no governo, mas convidar aqueles da ativa afeta diretamente as Forças Armadas como instituição e evidentemente ridiculariza seu suposto papel ‘não partidário’ na democracia brasileira”. (Christoph Harig, pesquisador da Universidade Helmut Schmidt)

Dos três grandes grupos da gestão Bolsonaro — os evangélicos, os olavistas e os militares — esse último parece ser o grupo que mais se beneficiou, e por fora dos holofotes. Os militares são responsáveis por 8 dos 22 gabinetes ministeriais, enquanto os evangélicos, por exemplo, ganharam apenas um, chefiado por Damares Alves. Para dar nome aos bois: Walter Souza Braga Netto (Casa Civil), Augusto Heleno (Segurança Institucional), Fernando Azevedo e Silva (Defesa), Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Wagner Rosário (CGU), Bento Albuquerque (Minas e Energia), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência) e Eduardo Pazuello (Saúde) são os militares que estão no comando do país. Além de, é claro, o vice presidente, Hamilton Mourão. Desse modo, torna-se evidente quem de fato está vencendo esse embate de forças dentro da gestão Bolsonaro, sendo colocados até em ministérios bem fora do escopo “militar”, como o da saúde.

Aqui, pode-se dizer que, não é o Bolsonaro que se cercou de militares para agradar seus eleitores e por afinamento ideológico, mas os militares que se aliaram a Bolsonaro para recuperar um protagonismo no Poder, até porque é sabida a insatisfação e o descontentamento dos militares em relação ao presidente desde o começo de seu mandato.

Os episódios que os militares demonstraram seu descontentamento com o presidente, e até com as instituições democráticas em geral não são poucos, validando a tese de que Bolsonaro não passa de um passaporte de retorno das forças armadas a vida pública.

Em uma entrevista à revista Veja, em agosto de 2019, o então presidente do STF, Dias Toffoli, contou que havia uma ala do Exército que estava a “discutir a incapacidade do presidente de governar, enquanto outra, mais radical e formada por militares de baixa patente, falava em uma sublevação contra as “instituições corruptas”. Também foram apontadas pelo ministro, já naquela época, as intenções anti-democráticas de alguns setores das forças armadas. Foi mencionado por Toffoli que um dos generais próximos ao presidente consultou um ministro do Supremo para saber se existiria alguma brecha na Constituição, em que as Forças Armadas poderiam ter autonomia para utilizar soldados, independentemente de autorização presidencial, para garantir a “lei e a ordem”.

Em outra ocasião, militares do governo foram vistos se encontrando fora do conhecimento do Bolsonaro, em novembro de 2020 (caso que já havia ocorrido antes em 2019). O vice-presidente Hamilton Mourão, os ministros Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto (Casa Civil), além do comandante do Exército, Edson Leal Pujol se reuniram para discutir a conjuntura nacional, sem convidar o Presidente, que se mostrou surpreso ao descobrir tal encontro. Os militares presentes na reunião de cúpula também se dirigiam a Mourão como “presidente”.

A exclusão de Bolsonaro das reuniões entre a alta cúpula militar dentro da gestão do governo, nos faz questionar quem está tomando as decisões e se o poder, agora, pertence a essa corporação.

As atitudes de Mourão em contradizer o próprio Presidente em entrevistas são outro exemplo de uma certa falta de respeito ou de legitimidade do Presidente frente aos militares, como quando afirmou que a situação da presidência de Biden estava cada vez mais “irreversível”, enquanto Bolsonaro ainda apoiava Trump publicamente.

Mas nada disso impede os apoiadores do governo de serem apoiadores das Forças Armadas dentro dele, mesmo que essas estejam conscientemente excluindo Bolsonaro das reuniões de gabinete, preferindo conversar com Mourão, vendo nele uma maior legitimidade. Ao contrário, uma pesquisa feita pelo poder360 mostrou que o apoio dos militares no governo cresceu de 37% para 43% em julho de 2020.

Quanto mais Bolsonaro aparece na mídia como um ser intragável, maldizendo a vacina, oferecendo alternativas como cloroquina e colocando o país na miséria, a população — mesmo em setores de esquerda — tende a ver Mourão como um indivíduo moderado e racional, que tornaria possível um diálogo entre diferentes setores da sociedade. Assim, Bolsonaro serve também como uma cortina de fumaça para os representantes da instituição alicerce do Estado burguês.

Sobre isso, até Bolsonaro parece perceber o óbvio: no final do dia, são as forças armadas que decidem em que tipo de regime vivemos. Em entrevista ao Globo, em janeiro desse ano, o presidente mostra que entendeu o tamanho do seu poder no sistema “democrático” brasileiro, afirmando que estamos em uma “democracia” apenas porque as Forças Armadas nos permitem, e que o cenário, segundo ele, pode mudar a qualquer momento.

Não só pode, como é exatamente para esse horizonte — de autoritarismo aberto — que estamos caminhando. Não se enganem, as Forças Armadas não existem para defender nenhum tipo de modelo de Estado ou uma suposta integridade nacional e sim, a infraestrutura: o modelo econômico neoliberal e latifundiário. A forma que a superestrutura toma, que no nosso caso é estado democrático de direito, é condicionada as necessidades da infraestrutura. Para defender um contínuo saque econômico, com a necessidade de implementação de cada vez mais rígidas reformas neoliberais, todas as medidas serão consideradas, como Bolsonaro mesmo disse — tudo pode mudar a qualquer momento. Sendo assim, caso torne-se necessário mudar a forma para salvar a essência, assim será feito.

Como Bolsonaro mesmo nos informa, naquela mesma entrevista, as Forças Armadas são a última barreira contra o “socialismo”. Ora, ele não está errado, elas são a última barreira contra um levante e uma rebelião de uma população de um país semicolonial cada vez mais pauperizada. O Brasil, pelas suas próprias condições materiais, é um barril de pólvora, e os nossos governantes sabem disso.

Por isso, com o passar da crise e a necessidade de implementação de medidas econômicas mais rígidas, as forças armadas foram arrastadas de volta para o olho do furacão da política doméstica para acalmar os ânimos. Os militares hoje estão em contradição ferrenha com Bolsonaro sobre como deve se dar o trato com o Estado e a gestão de governo. Enquanto Bolsonaro opta por continuar com seu ímpeto abertamente fascista, os militares tendem a preferir a progressão de um autoritarismo com seus ares de moderado e um pouco mais mascarado.

Embora tenhamos que continuar criticando o governo Bolsonaro, não nos limitemos à críticas vazias, de que o problema é apenas uma questão de ideologia pessoal e índole, e sim entender as condições concretas do poder que cerca a cadeira do presidente. Os militares hoje são a instituição de maior confiança da população brasileira, e com Bolsonaro, conseguiram a alavanca necessária para sua volta ao centro dos poderes. O fato é que são eles que hoje detêm o poder, mesmo em embate constante com o presidente. Além disso, está colocada a necessidade de um autoritarismo cada vez mais incisivo por parte desse grupo para realizar o projeto de saqueio ainda mais profundo das riquezas nacionais, apenas não sabemos se eles vão continuar atuando com algum civil como bode expiatório ou se as condições materiais vão requisitar uma tomada de posição mais clara de sua parte.

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Texto: Ana Botner
Foto: Laura Cantal