Por Henrik Ibsen, 1882
[No original, o protagonista é um homem — Dr. Stockmann]
PERSONAGENS
DRA. THAMY STOCKMANN, médica da Estação Balneária.
SRA. STOCKMANN, sua mulher.
PETRA, sua filha, professora pública.
EILlF e MORTEN, seus filhos, 13 e 10 anos.
PETER STOCKMANN, irmão mais velho da doutora, prefeito, chefe de polícia, presidente da Estação Balneária, etc.
MORTEN KIIL, dono de curtume, pai adotivo da Sra. Stockmann.
HOVSTAD, editor do jornal A Voz do Povo.
BILLlNG, subeditor do jornal.
HORSTER, comandante de navio.
ASLAKSEN, impressor do jornal.
CIDADÃOS de todas as categorias, algumas mulheres e um bando de colegiais que vieram para a reunião pública.
A ação passa-se numa pequena cidade na costa meridional da Noruega.
Primeiro Ato
Ilustrado por Janayna Victória
(É noite. Sala de estar da Dra. Stockmann, modestamente mobiliada, mas com bom gosto. Na parede da direita, há duas portas. Uma conduz ao gabinete de trabalho da Dra. Stockmann e a outra dá para o vestíbulo. Na parede em frente a esta, à esquerda, há uma porta que dá para os quartos de dormir. Mais ao centro da mesma parede, está a estufa. No primeiro plano, atrás de uma mesa oval contra a parede, há um sofá e acima dele está pendurado um espelho. No fundo da peça, por uma porta aberta, se vê a sala de jantar. Na mesa, sobre a qual há um lampião com uma pantalha, está servido o jantar e Billing está sentado com um guardanapo ao pescoço. A Sra. Stockmann, em pé junto à mesa, alcança-lhe um prato de carne. Os outros lugares vazios e os talheres em desordem deixam claro que o jantar já acabou)
SRA. STOCKMANN – Sinto muito, Sr. Billing, mas quando se chega atrasado mais de uma hora, só se encontra comida fria.
BILLING (Comendo) – Está ótimo! Excelente! Notável!
SRA. STOCKMANN – O senhor sabe como a Dra. Stockmann é pontual…
BILLING – Quer que lhe diga a verdade? Isso para mim é indiferente. Na verdade, prefiro comer sozinho, sem ninguém para me incomodar.
SRA. STOCKMANN – Bem, já que é assim… (Vira-se para a porta de entrada, escuta) Deve ser Hovstad…
BILLING – É provável. (Entra o prefeito, Peter Stockmann, de sobretudo, com o boné do uniforme e uma bengala na mão)
PREFEITO – Saúdo-lhe com todo o respeito, querida cunhada.
SRA. STOCKMANN (Atravessando a sala) – Ah, é você? Boa noite. Muita bondade sua vir nos ver.
PREFEITO – Eu estava passando por aqui e então… (Dá uma olhadela para a sala de jantar) Mas vejo que vocês têm visitas.
SRA. STOCKMANN (Com ligeiro embaraço) – Pois é, casualmente… (Um pouco alvoroçada) Mas você não quer sentar e tomar alguma coisa?
PREFEITO – Eu, não! Francamente, agradeço-lhe. Jantar? Não, não… Não tenho estômago para isso.
SRA. STOCKMANN – De vez em quando, não faz mal.
PREFEITO – Não, não. Muito obrigado: limito-me ao meu chá e às minhas torradas. A longo prazo é mais sadio… Além do que é mais econômico.
SRA. STOCKMANN (Sorrindo) – Mas não vá pensar, por isso, que somos umas gastadoras, Thamy e eu.
PREFEITO – Você não, cunhada. Longe de mim tal pensamento. (Apontando para a porta do gabinete da doutora) Ela saiu?
SRA. STOCKMANN – Saiu. Foi dar uma voltinha com as crianças, depois do jantar.
PREFEITO – Tem certeza de que isso é bom para a saúde? (Ouvindo) Provavelmente é ela que chega.
SRA. STOCKMANN – Não, não é ela… (Batem à porta) Entre! (Entra Hovstad, vindo do vestíbulo) Ah! É o senhor Hovstad.
HOVSTAD – Sim. Desculpem-me. É que me demorei na redação… Boa noite, Sr. Prefeito.
PREFEITO (Saudando-o com frieza) – Sem dúvida, o senhor vem por um motivo muito importante.
HOVSTAD – Sim, em parte. Vim buscar um artigo para o jornal.
PREFEITO – Naturalmente. Aliás, ouvi dizer que minha irmã está se dando muito bem como colaboradora da Voz do Povo.
HOVSTAD – Sem dúvida. Cada vez que ela precisa dizer umas verdades ela escreve no nosso jornal.
SRA. STOCKMANN (A Hovstad) – Mas… o senhor não quer…? (Aponta para a mesa de jantar)
PREFEITO – É claro! E de modo algum eu o censuro por dirigir-se a um público no qual encontra eco. Aliás, Sr. Hovstad, não tenho nenhum motivo pessoal para ter queixas do seu jornal.
HOVSTAD – Tenho certeza disso…
PREFEITO – Em suma: em nossa cidade reina um belo espírito de tolerância, que é o autêntico espírito de cidadania. Deve-se isso ao fato de termos um interesse em comum, que nos une a todos – um interesse pelo qual todos os cidadãos honrados têm igual preocupação.
HOVSTAD – O senhor está se referindo à Estação Balneária?
PREFEITO – Exatamente! A Estação Balneária é algo magnífico! E tenho absoluta certeza de que esse estabelecimento será uma fonte de riqueza vital para nossa cidade.
SRA. STOCKMANN – Thamy também acha.
PREFEITO – E é um fato! Veja que desenvolvimento extraordinário tem tido nossa cidade nestes dois últimos anos! Nota-se que há gente, vida, movimento. A cada dia que passa, as casas e os terrenos se valorizam.
HOVSTAD – E os desempregados diminuem…
PREFEITO – É verdade. Aí também o progresso é benéfico. Além disso, os impostos pesam muito menos sobre as classes abastadas. E diminuirão ainda mais se tivermos um bom verão, muitos veranistas… e um belo contingente de doentes que espalharão a fama do nosso estabelecimento.
HOVSTAD – Pelo que se ouve na cidade, é o que todo mundo espera.
PREFEITO – Os primeiros indícios são ótimos. Todos os dias recebemos pedidos de reservas e informações.
HOVSTAD – Nesse caso, creio que o artigo da doutora será muito oportuno.
PREFEITO – Ah! Então ela voltou a escrever?
HOVSTAD – Foi neste inverno. É um artigo onde a doutora recomenda nossas águas e destaca as ótimas condições higiênicas do Balneário. Mas não publicamos por que…
PREFEITO – Ah! Sim? Ela dizia algo inconveniente?
HOVSTAD – Não, não foi isso: é que eu achei melhor esperar a primavera. Só agora é que o povo começa a se preparar para o veraneio.
PREFEITO – Tem razão, Sr. Hovstad, toda a razão.
SRA. STOCKMANN – Quando se trata do Balneário, Thamy é incansável.
PREFEITO – Para isso está a serviço lá.
HOVSTAD – Não convém esquecer que devemos a ela a criação da Estação.
PREFEITO – A ela? É claro! Já ouvi várias pessoas dizerem isso. Entretanto, eu acho que, modestamente, também dei a minha contribuição para a criação desse empreendimento.
SRA. STOCKMANN – Com certeza, e Thamy nunca deixou de reconhecer isso.
HOVSTAD – Ora essa, e quem se atreveria a negá-lo, Sr. Prefeito? Todos sabem que foi o senhor quem pôs o negócio em andamento e lhe deu vida. Eu quis dizer, simplesmente, que a ideia foi da doutora.
PREFEITO – Sim, sim! Jamais faltaram ideias à minha irmã. E ela as teve até demais! Mas quando se trata de colocá-las em prática, Sr. Hovstad, é melhor dirigir-se a outra pessoa… E eu acreditava que pelo menos nesta casa…
SRA. STOCKMANN – Mas meu querido cunhado…
HOVSTAD – Como pode pensar, Sr. Prefeito…?
SRA. STOCKMANN – Mas sente-se, Sr. Hovstad, e tome alguma coisa. Minha mulher não deve tardar.
HOVSTAD – Obrigado. Talvez prove alguma coisinha. (Entra na sala de jantar).
PREFEITO (Baixando um pouco a voz) – É incrível como esses filhos de camponeses não têm o menor tato.
SRA. STOCKMANN – Vamos, cunhado, deixe de bobagens! Que lhe importa isso? Não podem, você e Thamy, dividir essa honra como bons irmãos?
PREFEITO – Sem dúvida. Mas, pelo visto, algumas pessoas não enxergam assim.
SRA. STOCKMANN – Ora, vamos, vocês dois se entendem tão bem! (Escutando) Desta vez, sim, acho que é ela. (Vai abrir a porta)
DRA. STOCKMANN (Rindo e falando ruidosamente para os bastidores) – Olha, Catarina, aqui temos mais um convidado. Nada menos que o Capitão Horster. Tire o sobretudo. Ah! É verdade, você não usa sobretudo. Imagina só Catarina, encontrei-o na rua e tive que convencê-lo a subir. (O Capitão Horster entra e cumprimenta a Sra. Stockmann) Vamos, entrem. Eles dizem que estão morrendo de fome. Venha, Capitão Horster. Venha provar o assado. (Leva Horster para a sala de jantar. Eilif e Morten entram também)
SRA. STOCKMANN – Thamy, temos visita…
DRA. STOCKMANN (Na porta, voltando-se) – Ah! É você, Peter! (Aproxima-se dele e estende-lhe a mão) Que bom lhe ver!
PREFEITO – Infelizmente ,já estou de saída…
DRA. STOCKMANN – Bobagem! Daqui a pouco vamos servir uma bebidinha. Você não esqueceu o aperitivo, Catarina?
SRA. STOCKMANN – Fica tranquila, já estou providenciando. (Ela entra na sala de jantar)
PREFEITO – Aperitivo! Era só o que faltava…
DRA. STOCKMANN – Venha, sente-se ali. Vamos nos divertir um pouco, tomar uma bebida.
PREFEITO – Obrigado. Nunca tomo parte em festins com álcool.
DRA. STOCKMANN – Mas isto não é um festim.
PREFEITO – Parece-me que sim. (Olha, de novo, para a sala de jantar) Não sei onde vocês conseguem meter toda essa comida.
DRA. STOCKMANN (Esfregando as mãos) – Como é agradável ver a mocidade comer, não acha? Sempre tem apetite! As crianças precisam de alimento, de forças! São elas que vão enfrentar os desafios do futuro e construir algo novo!
PREFEITO – Poderia me dizer que desafios são esses?
DRA. STOCKMANN – Pergunte aos jovens. Eles responderão quando o momento chegar. Quanto a nós, nesses assuntos, não enxergamos grande coisa. E não é de estranhar. Dois velhos retrógrados, como você e eu.
PREFEITO – Pelo amor de Deus! Você tem umas expressões!
DRA. STOCKMANN – Desculpe-me, Peter. Não tome minhas palavras ao pé da letra… Mas diante de tantas novidades me sinto muito feliz. Vivemos tempos prodigiosos! De uma hora para outra podemos ver um mundo novo formar-se diante de nossos olhos!
PREFEITO – Você realmente acha isso?
DRA. STOCKMANN – Sim, compreendo que não possa sentir como eu. Você passou toda a vida sem arredar pé daqui e isso amortece a sua sensibilidade. Mas eu, que tive de me isolar durante anos perto do Polo Norte, num lugar ermo, na mais completa solidão, sem quase nunca ver uma cara nova, nem ouvir ninguém, eu tive os meus sentidos aguçados, e tenho a sensação de, repentinamente, estar no meio de uma grande cidade, trepidante de movimento e de ação.
PREFEITO – Hum… Uma grande cidade…
DRA. STOCKMANN – Sim, já sei. Tudo isso é pequeno em comparação ao que se vê em outros lugares. Mas aqui há vida, há um futuro pelo qual vale a pena trabalhar e lutar. E isso é o que importa. (Chamando) Catarina! Veio o carteiro?
SRA. STOCKMANN (Respondendo da sala de jantar) – Não. Ele não veio.
DRA. STOCKMANN – E, além disso, Peter, já é alguma coisa ter assegurado o pão de cada dia! E isso, Peter, só nós, que vivemos tantas privações, podemos valorizar.
PREFEITO – De fato, mas…
DRA. STOCKMANN – Pois é isso. Depois de tudo que passamos, agora podemos viver como fidalgos! Hoje, por exemplo, tivemos assado para o jantar. Que diz? Não quer provar um pedaço? Pelo menos, quero que o veja. Decida-se, venha…
PREFEITO – Não, não. Não quero nada, absolutamente.
DRA. STOCKMANN – Nesse caso, vem cá. Está vendo? Temos um belo tapete.
PREFEITO – Sim, já notei.
DRA. STOCKMANN – E também um novo lustre. Olha! Tudo isso é fruto das economias de Catarina. E aparenta um certo luxo, é gracioso. Não acha? Olhe daqui! Não, não, não, assim! Aí. Vê? Quando a luz bate em cheio… É realmente elegante, não é?
PREFEITO – É verdade… Quando a gente se permite esses luxos…
DRA. STOCKMANN – Então! Eu agora posso me permitir isso. Catarina diz que eu ganho quase tanto quanto o que gastamos.
PREFEITO – Quase tanto! Sim.
DRA. STOCKMANN – Afinal de contas, é preciso que uma mulher de ciência, como eu, viva com uma certa dignidade. Tenho certeza de que um prefeito gasta por ano muito mais do que eu.
PREFEITO – Claro que sim. Um prefeito! Estás falando de um funcionário superior do Estado!
DRA. STOCKMANN – Pois bem! Deixemos os prefeitos, imagine um grande comerciante qualquer. Ele gasta muito mais do que eu!
PREFEITO – Ora! Evidentemente!
DRA. STOCKMANN – Por outro lado, Peter, nós não fazemos despesas inúteis. Não posso, entretanto, recusar o prazer de receber visitas em minha casa. Para mim, é uma necessidade orgânica, uma necessidade vital, por ter estado tantos anos longe do convívio dos homens, ver em torno de mim toda essa mocidade de espírito livre, audaz, ativa, empreendedora, como estes que estão comendo à mesa. Gostaria que você conhecesse melhor o Hovstad.
PREFEITO – Ah! Sim… Hovstad. Ele até me falou de um outro artigo seu que ia publicar.
DRA. STOCKMANN – Um artigo meu?
PREFEITO – Sim, sobre o Balneário. Um artigo que você escreveu no inverno.
DRA. STOCKMANN – É verdade, não me lembrava mais. Mas eu não quero que seja publicado por enquanto.
PREFEITO – Como? Agora é o momento mais oportuno!
DRA. STOCKMANN – Sim, sim, tens razão, mas em condições normais… (Atravessa o quarto)
PREFEITO (Seguindo-a com os olhos) – Mas… Qual é o problema? Existe alguma anormalidade?
DRA. STOCKMANN (Detendo-se) – Peter, não posso dizer nada de concreto. Pelo menos, por enquanto. Talvez muitas coisas não estejam normais. Ou talvez nada exista de anormal: é possível que tudo não passe de simples fantasia.
PREFEITO – Realmente, estou achando isso tudo muito misterioso. Diga-me, mulher, o que se passa? Alguma coisa que não possa saber? Acho que como presidente da Estação tenho o direito a…
DRA. STOCKMANN – Me parece que… Mas que diabos, Peter! Não vamos começar com discussões, não é mesmo?
PREFEITO – Deus me livre! Tenho horror a brigas ou discussões com quem quer que seja. Mas exijo que tudo se resolva segundo os regulamentos e passe pela autoridade legalmente constituída para esse fim. Nada de operações clandestinas!
DRA. STOCKMANN – Tenho eu por acaso o hábito de usar caminhos escusos ou clandestinos?
PREFEITO – Não digo que você tenha feito isso. Mas sei que tem a tentação permanente de fazer as coisas por sua própria conta. E, numa sociedade bem organizada, isso é inadmissível. As iniciativas particulares devem se submeter, custe o que custar, ao interesse geral, ou melhor, às autoridades encarregadas de zelar pelo bem geral.
DRA. STOCKMANN – É possível. Mas, com mil demônios, que me importa tudo isso?
PREFEITO – Importa muito, minha querida Thamy, você nunca quis reconhecer. Mas preste bem atenção: você acabará por aprender. Mais dia, menos dia. Era isso que eu queria te dizer.
DRA. STOCKMANN – Você está completamente louco. Está vendo problemas, complicações onde não há nada.
PREFEITO – Não é meu costume, Thamy. Além disso, não quero discutir. (Dirige uma saudação à sala de jantar) Adeus, minha cunhada. Adeus, senhores. (Sai)
SRA. STOCKMANN (Entrando) – Ele se foi?
DRA. STOCKMANN – Foi-se. E zangadíssimo.
SRA. STOCKMANN – O que você disse a ele, Thamy?
DRA. STOCKMANN – Absolutamente nada. Afinal de contas, ele não pode exigir que eu apresente as minhas conclusões antes do tempo.
SRA. STOCKMANN – Conclusões? Do que você está falando?
DRA. STOCKMANN – Não é nada, Catarina. São assuntos que só interessam a mim… Acho estranho não ter vindo o carteiro. (Hovstad, Billing e Horster, e a seguir Eilif e Morten, entram, vindos da sala de jantar)
BILLING (Espreguiçando-se) – Que Deus me perdoe, mas um jantar destes transforma uma pessoa.
HOVSTAD – O prefeito não estava com cara de muitos amigos, hoje.
DRA. STOCKMANN – É o estômago. Ele tem problemas de digestão.
HOVSTAD – Acho que é a nós, da Voz do Povo, que ele não consegue digerir.
SRA. STOCKMANN – Mas esta noite parece-me que o senhor estava bem com ele.
HOVSTAD – Sim, sim. Trata-se apenas de uma trégua.
BILLING – Uma trégua. Sim, é o termo exato.
DRA. STOCKMANN – Lembrem-se de que Peter é um pobre solitário. Não tem uma família onde possa se abrigar; tudo o que ele tem são negócios, negócios. E além disso, o que se pode dizer de um homem que bebe só chá! Esta água suja! Vamos, vamos para a mesa, meus filhos! Então, Catarina, e esse ponche?
SRA. STOCKMANN (Encaminhando-se para a sala de jantar) – Vou buscar.
DRA. STOCKMANN – Capitão Horster, venha sentar-se aqui, perto de mim. Nos vemos tão pouco… Sentem-se, meus amigos… (Sentam-se. A Sra. Stockmann traz uma bandeja com uma jarra, copos, etc.)
SRA. STOCKMANN – Pronto; aqui está o limão e o rum. Ali está o conhaque. Cada um se sirva, à vontade.
DRA. STOCKMANN (Tomando um copo) – É o que faremos. (Preparam a bebida) Agora, venham os charutos. Eilif! Você deve saber onde está a caixa. E você, Morten, traga o meu cachimbo. (Os dois meninos vão ao quarto da direita) Desconfio que o Eilif surrupia um charuto de vez em quando, mas eu finjo que não vejo. (Chamando) E também o meu gorro, Morten! Catarina? Por favor, diz a ele onde o botei. Pronto, não precisa, ele já está trazendo. (Os dois meninos trazem os charutos e o cachimbo) Sirvam-se, meus amigos. Quanto a mim, sou fiel ao meu velho cachimbo. Ele me acompanhou em muitas expedições entre as nevascas do Polo Norte. (Brindando) Saúde! É muito melhor estar no aconchego do lar…
SRA. STOCKMANN (Fazendo tricô) – O Capitão Horster vai partir logo?
HORSTER – Espero estar pronto na semana que vem.
SRA. STOCKMANN – O senhor vai para a América?
HORSTER – Sim. Pelo menos é o que pretendo.
BILLING – Mas então o senhor não vai votar nas eleições municipais?
HORSTER – Vão haver novas eleições?
BILLING – Não sabia?
HORSTER – Não. Eu não me interesso por essas coisas.
BILLING – O senhor não se interessa pelos assuntos públicos?
HORSTER – Para falar a verdade, não entendo dessas coisas.
BILLING – Mesmo assim, deve-se pelo menos votar.
HORSTER – Mesmo os que não entendem nada?
BILLING – Como não entende nada? Que quer o senhor dizer? A sociedade é como um navio. Todos devem estar atentos a sua rota.
HORSTER – É possível que em terra firme seja assim. No mar, isso não daria resultado.
HOVSTAD – É estranho como a maioria dos marinheiros pouco se preocupa com interesses da nação.
BILLING – Sim, é estranho mesmo.
DRA. STOCKMANN – Os marinheiros são como os pássaros migradores: tanto se sentem em casa no Norte como no Sul. E isso nos obriga a trabalhar mais ainda, não lhe parece Hovstad? A Voz do Povo de amanhã publica algo de interessante?
HOVSTAD – Dos nossos assuntos municipais? Não. Mas depois de amanhã pretendo publicar seu artigo.
DRA. STOCKMANN – Com os diabos! É verdade! Meu artigo! Não, ouça: é preciso esperar um pouco…
HOVSTAD – Como? O jornal tem espaço, e este é justamente o momento oportuno!
DRA. STOCKMANN – Sim, sim. Você talvez tenha razão. Mas não importa. É preciso esperar. Mais tarde eu lhe explicarei o motivo. (Entra Petra)
PETRA – Boa noite.
DRA. STOCKMANN – Ah! Chegou! Boa noite, Petra. (Trocam saudações. Petra tira o chapéu e despe o casaco, colocando os cadernos em cima de uma cadeira, junto à porta)
PETRA – Como! Estão de festa por aqui enquanto eu dou duro lá fora?
DRA. STOCKMANN – E por que não? Aproveite você também, agora.
BILLING (Para Petra) – Quer que lhe prepare um ponche?
PETRA – Obrigada, deixa que eu mesmo preparo. Você prepara um ponche muito forte. Ah! Já ia me esquecendo, mãe! Trago uma carta para você. (Aproxima-se da cadeira onde pôs os casacos)
DRA. STOCKMANN – Uma carta! De quem?
PETRA (Procurando no bolso do casaco) – É uma carta que o carteiro me entregou quando eu estava saindo.
DRA. STOCKMANN (Erguendo-se e indo ao encontro dela) – E só agora você me entrega?
PETRA – Eu tinha pressa, não podia voltar. Aqui está.
DRA. STOCKMANN (Pegando da carta) – Me dá esta carta, minha filha, vamos. (Olhando o endereço) Sim, é esta.
SRA. STOCKMANN – A carta que você estava esperando, Thamy?
DRA. STOCKMANN – Essa mesma. Depressa! Preciso ler isto imediatamente. Preciso de uma boa luz, Catarina! Meu quarto está sem lamparina, ainda?
SRA. STOCKMANN – Não, Thamy. A lamparina está acesa em cima da sua escrivaninha.
DRA. STOCKMANN – Está bem, está bem. Vocês me dão licença um momento… (Entra no quarto à direita)
PETRA – O que será, mãe?
SRA. STOCKMANN – Não sei de nada. Nestes últimos dias, ela tem perguntado a toda hora pelo carteiro.
BILLING – Com certeza algum paciente que mora no campo.
PETRA – Pobre mãe. Realmente ela trabalha demais. (Preparando o seu ponche) Este vai ser maravilhoso!
HOVSTAD – Você estava dando aula até agora?
PETRA (Provando o ponche) – Uma aula de duas horas.
BILLING – E quatro horas de instituto, de manhã.
PETRA (Sentando-se à mesa) – Cinco horas.
SRA. STOCKMANN – E, pelo jeito, você ainda tem os deveres dos alunos para corrigir.
PETRA – Uma pilha inteira.
HOVSTAD – Você também trabalha demais, pelo que vejo.
PETRA – Pode ser, mas não me queixo. Sente-se um cansaço delicioso quando termina.
BILLING – E você gosta disso?
PETRA – Gosto. E depois, se dorme tão bem…
MORTEN – Você deve ter muitos pecados, Petra.
PETRA – Eu?
MORTEN – Sim! Para trabalhar tanto. O Sr. Roerlund diz que o trabalho é uma penitência pelos nossos pecados.
EILIF (Assobiando) – Que bobagem! Só um idiota para acreditar nessas baboseiras.
SRA. STOCKMANN – Que é isso, Eilif, que é isso?
BILLING (Rindo) – É engraçado!
HOVSTAD – Não gostaria de trabalhar, Morten?
MORTEN – Não. Que ideia!
HOVSTAD – Mas então o que você quer ser quando crescer?
MORTEN – Eu? Quero ser um viking.
EILIF – Nesse caso, seria preciso que fosse pagão.
MORTEN – Pois bem, eu me tornarei pagão…
BILLING – Concordo contigo, Morten.
SRA. STOCKMANN (Fazendo-lhe um sinal) – Com certeza que não, Sr. Billing! O senhor não fala sério.
BILLING – Que Deus me castigue se não é verdade! Sou um pagão e disso me orgulho. A senhora verá: todos nós nos tornaremos pagãos, muito breve.
MORTEN – E então poderemos fazer tudo o que bem entendermos, não é?
BILLING – É que, não é bem assim, Morten…
SRA. STOCKMANN – Vamos, crianças, para o quarto, vocês com certeza têm dever de casa para amanhã.
EILIF – Eu quero ficar um pouquinho mais.
SRA. STOCKMANN – Não: você também precisa ir para o quarto. Vão, vocês dois. (Os dois meninos se despedem e entram no quarto à esquerda)
HOVSTAD – Diga-me sinceramente. A senhora acha realmente que essas conversas são prejudiciais às crianças?
SRA. STOCKMANN – Não sei dizer, mas não gosto disso.
PETRA – Eu acho que você está exagerando, mãe.
SRA. STOCKMANN – É bem possível, mas não gosto desta forma de falar, pelo menos aqui em casa.
PETRA – Há tanta mentira em casa quanto na escola. Aqui temos de nos calar e lá devemos mentir para as crianças que nos ouvem.
HORSTER – Mentir?
PETRA – Às vezes somos obrigadas a lhes ensinar coisas que nós mesmas não acreditamos.
BILLING – Sim, é bem verdade isso.
PETRA – Se eu tivesse meios, faria uma escola completamente diferente dessas tradicionais!
BILLING – Ora! Os meios…
HORSTER – Se está pensando nisso seriamente, senhorita, posso colocar um ótimo espaço à sua disposição. A velha casa de meu falecido pai é grande e está quase vazia. Tem uma enorme sala de jantar no primeiro piso.
PETRA (Rindo) – Sim, sim, obrigada. Mas o mais provável é que eu jamais realize o meu projeto.
HOVSTAD – Isso se explica. Estou convicto de que a senhorita Petra irá, de preferência, para o jornalismo. A propósito: você já leu aquela novela inglesa que prometeu traduzir para nós?
PETRA – Não, ainda não. Mas farei logo, prometo. (Entra a Dra. Stockmann, que vem do seu gabinete de trabalho, com uma carta aberta na mão)
DRA. STOCKMANN (Agitando a carta) – Podem ficar certos, meus amigos, de que vamos ter notícias sensacionais aqui na cidade!
BILLING – Novidades?
SRA. STOCKMANN – De que se trata?
DRA. STOCKMANN – De uma grande descoberta, Catarina!
HOVSTAD – Que está dizendo?
SRA. STOCKMANN – O que você fez?
DRA. STOCKMANN – Exatamente. O que eu fiz! (Caminhando a passos largos pelo quarto) Venham dizer agora, como costumam dizer, que são fantasias, ideias de louco. Quem há de atrever-se? Ninguém vai ter este atrevimento!
PETRA – Vamos, mãe. Diga, afinal, do que se trata.
DRA. STOCKMANN – Sim, sim, esperem um pouco, ficarão sabendo de tudo. Imaginem! Ah! Se Peter estivesse aqui! É a demonstração de quão torpes nós somos, verdadeiros cegos, piores do que toupeiras.
HOVSTAD – Que é que a senhora quer dizer com isso, doutora?
DRA. STOCKMANN (Detendo-se junto à mesa) – Não é opinião geral que a nossa cidade é um lugar saudável?
HOVSTAD – Certamente.
DRA. STOCKMANN – E até mesmo salubérrimo, um lugar que se deve recomendar calorosamente tanto aos doentes como às pessoas sadias.
SRA. STOCKMANN – Mas, querida Thamy…
DRA. STOCKMANN – Assim é que a recomendamos, em todos os tons. Escrevi muito a respeito: artigos na Voz do Povo, folhetos…
HOVSTAD – Sim, sim, e então?
DRA. STOCKMANN – Essa Estação Balneária a qual chamamos de grande artéria, de nervo motor da cidade, de não sei mais o quê…
BILLING – “O coração palpitante de nossa cidade”, tomei a liberdade de escrever num momento solene…
DRA. STOCKMANN – É verdade. Ia me esquecendo. Pois bem! Sabem vocês o que é, na realidade, esse soberbo estabelecimento assim cantado em prosa e verso e que tanto dinheiro custou? Sabem vocês o que ele é?
HOVSTAD – Diga, doutora, diga logo!
SRA. STOCKMANN – Sim, diga!
DRA. STOCKMANN – O Balneário, todo ele, é um foco de infecções.
PETRA – Que Balneário, mãe!?
SRA. STOCKMANN (Ao mesmo tempo) – Nossos banhos!
HOVSTAD – Mas Doutora!…
BILLING – É incrível!
DRA. STOCKMANN – O Balneário todo nada mais é do que um sepulcro envenenado, garanto-lhes. Perigosíssimo para a saúde pública! Todas as imundícies do Vale dos Moinhos e dos curtumes infectam a água da canalização que vai ao reservatório de águas. E esse maldito lixo envenena as águas e vai até a praia…
HORSTER – Até aos locais de banhos?
DRA. STOCKMANN – Exatamente.
HOVSTAD – E como pode a senhora estar tão convencida de tudo isso, doutora?
DRA. STOCKMANN – Fiz pesquisas muito minuciosas. Há muito eu suspeitava de qualquer coisa. Na última temporada, houve entre os banhistas casos alarmantes de tifo e febres gástricas.
SRA. STOCKMANN – Sim, é verdade.
DRA. STOCKMANN – A princípio, pensávamos que as infecções tinham sido trazidas por eles. Porém mais tarde – no inverno – resolvi analisar a água com atenção redobrada.
SRA. STOCKMANN – Era isso, então, o que tanto lhe preocupava?
DRA. STOCKMANN – E como me preocupava, Catarina! Mas me faltavam recursos modernos para analisar a água. Então resolvi mandar amostras da água de beber e da água do mar para a Universidade, para que fosse feita uma análise rigorosa pelos químicos.
HOVSTAD – E acaba de receber os resultados da análise?
DRA. STOCKMANN (Mostrando a carta) – Aqui estão! Encontraram na água a presença de substâncias orgânicas em decomposição. Está cheia de infusórios, que são detritos de animais decompostos. O uso dessa água, quer interno, quer externo, é absolutamente prejudicial à saúde.
SRA. STOCKMANN – Louvado seja Deus por teres descoberto isso a tempo!
DRA. STOCKMANN – É verdade…
HOVSTAD – E o que a senhora pretende fazer?
DRA. STOCKMANN – Tomar providências para remediar isso, naturalmente.
HOVSTAD – É possível então…
DRA. STOCKMANN – Tem que ser possível. De outra forma, o Balneário estaria perdido… Só restaria fechá-lo. Felizmente, não chegamos a esse ponto. Sei perfeitamente o que podemos fazer.
SRA. STOCKMANN – E pensar, querida Thamy, que você guardou segredo sobre isso tudo.
DRA. STOCKMANN – Catarina, eu não sou tão louca a ponto de divulgar algo de tamanha gravidade sem ter certeza absoluta.
PETRA – Mas a nós, pelo menos…
DRA. STOCKMANN – A ninguém neste mundo. Mas agora sim. Amanhã você irá à casa do Leitão…
SRA. STOCKMANN – Ora, Thamy…
DRA. STOCKMANN – Está bem, está bem. Na casa do teu pai. Ah! Que surpresa ele vai ter. Ele diz que eu sou louca? Aliás, ele não é o único a pensar dessa maneira. Mas essa gente há de ver, e bem (Dá uma volta pela sala esfregando as mãos) Vais ver, Catarina, o rebuliço que esse caso vai provocar! Você nunca viu nada igual. Vai ser preciso mudar toda a canalização.
HOVSTAD (Pondo-se de pé) – Toda a canalização…?
DRA. STOCKMANN – Claro. A captação de água foi feita muito embaixo, próxima dos lençóis poluídos. Será preciso refazer as tubulações num plano mais acima, onde a água é boa.
PETRA – Então, afinal de contas, você é que tinha razão?
DRA. STOCKMANN – Claro! Você lembra, Petra? Eu escrevi contra o projeto deles. Mas, na época, ninguém me deu ouvidos. Agora eles vão ter que me ouvir, queiram ou não. Porque, como devem imaginar, redigi um relatório à administração da Estação Balneária. Está pronto há mais de uma semana. Só estava à espera disto. (Mostra a carta) Agora vou mandá-la. (Entra no gabinete e sai com um maço de papéis) Catarina, um papel! Preciso embrulhar tudo. (Embrulha) Pronto, aqui está! Dá o pacote à… À… (Bate com o pé) Como diabos se chama ela? A criada, com mil demônios! Que ela o leve imediatamente ao prefeito. (A Sra. Stockmann pega o embrulho de papéis e sai pela sala de jantar)
PETRA – Mãe, o que tio Peter vai achar de tudo isso?
DRA. STOCKMANN – O que você imagina que ele vai pensar? Acho que ele deveria ficar feliz e aliviado ao ver revelada uma descoberta tão importante.
HOVSTAD – A senhora me permite, doutora, publicar uma nota sobre a sua descoberta na Voz do Povo?
DRA. STOCKMANN – Sim, e ficaria muito grata.
HOVSTAD – É muito importante, de fato, que o público seja informado o quanto antes.
DR. STOCKMANN – Certamente que sim.
SRA. STOCKMANN – A criada já foi entregar o pacote.
BILLING – Com toda a certeza, a senhora vai se tornar uma das personagens mais importantes da cidade.
DRA. STOCKMANN (Caminhando, com ar satisfeito) Que nada! Fiz apenas o meu dever. Não importa…
BILLING – Diga-me, Hovstad, não lhe parece que a cidade deveria prestar uma grande homenagem à Dra. Stockmann?
HOVSTAD – Boa ideia! Vou propor através do jornal!
BILLING – E eu vou falar sobre isso com o Aslaksen.
DRA. STOCKMANN – Não, meus amigos, nada de badalações! Não quero ouvir falar nisso. E se a direção da Estação Balneária quiser aumentar o meu ordenado, recusarei. Recusarei! Você ouviu Catarina?
SRA. STOCKMANN – E tens razão.
PETRA (Erguendo o copo) – À sua saúde, mãe!
HOVSTAD e BILLING – À sua saúde, doutora, à sua saúde!
HOVSTAD (Chocando o copo no da doutora) – Felicidade e longa vida, doutora!
DRA. STOCKMANN – Obrigada, meus amigos, obrigada! Estou muito satisfeita. Ah! É uma bênção poder prestar um serviço à minha cidade, que eu tanto amo, e aos nossos concidadãos. Catarina! (Pega Catarina pela cintura e a faz girar. Ela grita e resiste. Risos, aplausos e aclamações. Eilif e Morten põem a cabeça pela porta entreaberta)
PANO
Adaptação: Mirna Wabi-Sabi
Revisão: A Inimiga da Rainha e Lookas Souza