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Pela Criação do Inusitado

Para tanto, é preciso reconhecer o que nos oprime e muitas vezes nos faz oprimir. É preciso matar o governo que nos habita, pois eles não são externos a nós. Eles vencem quando atuam em nossos pensamentos, imprimindo em nossos corpos e interiorizando em nossas mentes verdades absolutas que fazem com que suas demandas transformem-se nas nossas.

Os discursos globalizantes que se pautam na generalização dos povos, culturas e sociedades, velam-se pela ideia de inclusão para manter uma igualdade fictícia que atura as diferenças ou mesmo as suprime.  Tais discursos pautam-se em uma ideia de diversidade seletiva de fachada para ofuscar o pano de fundo de uma sociedade que pressupõe uma igualdade homogênea e definida, em que uns são mais iguais que outros.

Por meio do policiamento de qualquer movimento que escape à ordem, os soldados dos iguais estrategicamente organizam e controlam o mundo à sua maneira. Eliminam-se diferenças, apostando-se em padrões fixos e restritos de maneiras de ser e modos de viver, para assim convencionar uma ideia totalizante de normalidade.

O Estado soberano atua na manutenção dos ideais de uma nação que caminha num único sentido, orientado pelo mercado e pela ideologia vigente que determina a raça e o gênero dominantes, assim como os padrões de comportamento aceitáveis, para que tudo esteja em seu controle e que nada escape de sua interioridade. A tática estatal preserva sua unidade por meio de legislações que regulamentam a vida, categorizam as ações e meios de sobrevivência e definem maneiras de existência comuns a todos. Para garantir que sua ideologia prevaleça, persegue movimentos, racionaliza as consciências e usa sua força para coagir e oprimir.

As práticas de coação, muitas vezes implícitas doem na carne. Talvez, as dominações invisíveis sejam as mais perigosas, pois latejam em nosso cotidiano, contaminando nossa subjetividade. É no desvio, na esquiva, nos nossos atos de proteção, que de maneira repentina são acionados em nossos corpos, que percebemos o tamanho da opressão.

Portanto, é preciso identificar as opressões, dar-lhes nome, codifica-las para declarar guerra certeira ao inimigo e trabalhar incansavelmente em táticas que possam confundi-lo e confronta-lo.

Para tanto, é preciso reconhecer o que nos oprime e muitas vezes nos faz oprimir. É preciso matar o governo que nos habita, pois eles não são externos a nós. Eles vencem quando atuam em nossos pensamentos, imprimindo em nossos corpos e interiorizando em nossas mentes verdades absolutas que fazem com que suas demandas transformem-se nas nossas. Tal sistema só é eficaz quando acreditamos em suas instituições e submetemo-nos aos seus preceitos a partir de dentro de nós mesmas, ao internalizarmos suas regras e tratando-as como convenções inquestionáveis.

Para nos desvencilharmos, é preciso matar as normas que enraízam o pensamento para que possamos criar vácuos, bolhas para aerar terrenos férteis de fabulações de mundos de liberdade, para começarmos algum esboço que nos permita desviar das gaiolas ideológicas que policiam nossas mentes. É preciso abrir brechas que produzam saídas, ainda que saibamos que não estejam dadas, já que é no próprio ato de sair que as passagens são criadas.

Se invertermos o pensamento e compreendermos a igualdade não como lugar onde queremos chegar, mas um lugar de onde partir, ao assumirmos que somos todas capazes de ser, atuar e existir quando nos colocamos em relação, em encontro com a outra, talvez seja possível transpor as fronteiras das normatividades regidas por parâmetros de ser humano idealizado, e perfeitamente adaptado a uma sociedade restritiva, racista, globalizada, construída unilateralmente pelas instituições internacionais que pregam direitos universais em prol de uma ideia de humanidade padronizada inventada, e que garante e defende a existência de uns, mas deixam matar outras.

É na disputa do espaço de tais políticas perversas que cerceiam as subjetividades, modulam culturas, conduzem existências e produzem efeitos doloridos em nossos corpos, que descobrimos novas maneiras de lidar e garantir nossa sobrevivência material e intelectual. Na tentativa de nos mantermos fortes e unidas, cuidando-nos entre nós, para escaparmos e promovermos outras escutas, gestos e falas, é que inventamos novas ferramentas de resistência.

Ao agrimensar a dimensão dos pesares, sem deixar jamais de trazer à tona os momentos de respiro que nos permitam sobreviver e criar zonas de liberdade, juntamo-nos em nossos bandos de afinidade e afetos para tensionar a força autoritária que nos aplastra. Assim, traçamos estratégias coletivas de fuga que permitam intensificar nossa força ao criarmos novas e inusitadas maneiras de viver o presente para além da imposição de um mundo único, fechado, pautado pelo absolutismo de discursos produzidos como modelo para o pensamento.

Tal modelo permite que uma raça se sobreponha à outra pela violência da imposição de uma cultura homogênea, que matou toda sua ancestralidade e magia, em nome de um antropocentrismo modelado pelo cientificismo. O modo de vida que tem o homem como base de tudo atropelou, explorou, dominou e subjugou tudo a sua volta, em nome de um falso progresso, que hoje perdura,mas só chega para aqueles que por ele podem pagar.

Portanto, é necessário caminhar junto aos povos que desde sempre desenvolvem suas tecnologias e modos de vida ancestrais, e que no passado tiveram seus métodos roubados e usados em prol de um modelo desenvolvimentista, que enriquece uns em função do empobrecimento de outros.
Assistimos explicitamente a arrogância de uma classe dominante, que pelo simples fato de ser herdeira daqueles que têm no sangue a exploração e matança de outros povos para seu próprio enriquecimento, colocam-se como donos dos meios, das terras que foram roubadas dos povos que aqui já estavam.

Os discursos homogêneos de um mundo com uma única narrativa pobre e dominante, provoca-nos buscar e construir incansavelmente ações que se dão por uma resistência ativa, que ora rejeita o que nos é imposto, ora cria novas lógicas econômicas, relacionais, afetivas e políticas que implodam desde dentro os aparelhos estatais, projetando-se para fora, criando exterioridades aos modelos hegemônicos de subjetivação. Estar dentro e fora ao mesmo tempo, alternando entre um e outro, revezando, confundindo as lógicas racionalistas do Estado, é uma maneira de sobreviver dentro mesmo da estrutura, não apenas pela via do ataque, mas pela criação do inusitado, do que não pode ser apropriado. Aprendemos também com os povos que resistem há tempos e somamos forças em redes de apoio mútuo tecidas coletivamente, que unem-se estrategicamente em determinados momentos para nos contrapormos a algo maior que nós, mas também nos separarmos para tratarmos de opressões específicas e seus atravessamentos de raça, classe e gênero.

A composição de uma coletividade de subjetividades heterogêneas, repleta de divergências de pensamentos e maneiras de ser e conviver, enriquece as práticas cotidianas pela via das diferenças. Atuar a partir da pluralidade e da ideia da soma de presenças pela singularidade, em que toda e qualquer pessoa sempre possa somar com contribuições que compõem uma constelação de trajetórias, é uma maneira de desarmar o individualismo, diluir hierarquias e funções e seus processos competitivos, meritocráticos que selecionam os “melhores”, os mais iguais entre os iguais.

Pensar diferente e estar juntos ao mesmo tempo é o desafio político. Ao partimos do pressuposto da convivência pela via do dissenso é que tratamos de pensar uma política que se dê pelo direito de existir e que parta da composição de cada singularidade, das distintas maneiras de pensar e sem deixar perder a especificidade de cada luta e seus atravessamentos de raça classe e gênero. É justamente pela heterogeneidade das práticas de aprender, agir, existir, que se dá a potência da vida como experimentação coletiva.

Os momentos de suspensão que se dão quando encontramos nossos grupos de afinidade, dão-nos fôlego e nos mantêm no momento presente, atentas para as lutas que queremos comprar, para que ganhemos existências mais brilhantes e força coletiva para compor nossas práticas e sermos como flechas, que certeiras ou não, estão sempre apontadas, à espreita do momento ideal para o combate. Portanto, cabe a nós seguirmos com as lutas cotidianas que se dão no âmbito da macro-política, mas sem deixar de preservar e construir espaços de apoio mútuo e solidariedade entre nós. A aposta está nas pequenas relações que pelo acúmulo, vão reverberando em grandes redes de autonomia.
Como burlar os aparelhos de captura, implodindo-os desde dentro deles mesmos, produzindo vetores sempre em vias de escape de tudo que insiste em oprimir? Como aprender com os povos que resistem, que se reinventam, que com o punho erguido e corpo fechado de escudo, provocam ira e tiram o sono daqueles que insistem em um mundo de narrativas únicas e verdades absolutas?

Como criar outras traduções para o já dado, driblando as ordens que operam na codificação do pensamento pela transmissão vertical de informações e narrativas pobres, brancas e machistas, que servem a um determinado propósito de sociedade? Como ampliar nossos repertórios para extrapolar modos de vida que apenas reproduzem um sistema que gira em torno de si mesmo, trucidando corpos dissidentes, enfraquecendo o pluralismo de culturas, e cerceando a liberdade de existir para além do convencionado?

Não há dúvidas de que quanto mais se cerceiam as mentes, mais vias de escape são inventadas. A inevitabilidade de combater tais imposições que visam amordaçar nossas bocas e aprisionar nossos corpos, também cria movimentações que nutrem os jogos de forças, fazendo com que saiamos de nossos lugares de conforto para alimentarmos pensamentos rebeldes. Quando transmutados em ações, assim como as “ervas daninhas”, eles surgem em qualquer ponto e desaparecem sem aviso, para brotarem em outros lugares tornando-se pragas invencíveis.

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Texto: Marina Mayumi
Ilustração: Suzana Akemi