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Epiderme Reminiscente

As regras de apresentação criadas por mim foram: sempre acontecer em uma sala escura onde possam entrar de três em três pessoas por vez […], também não pode fotografar ou filmar e, se caso se sintam a vontade, quem assiste pode intervir, como ocorreu de arrancarem o arame do meu corpo, o tempo de duração da performance é entre uma hora e uma hora e meia.

Em Belém do Pará e em João Pessoa na Paraíba, locais onde performei meu expurgo de liberdade, salas escuras, sob um foco de luz deitada em uma mesa, totalmente nua e ferida, emaranhada por arames FARPADOS que penetram em minha pele, trata-se de minha performance Epiderme Reminiscente.
O ato apresentado na Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA), na disciplina de Performance e em eventos como Semana do Calouro, Seminário de Teatro e, posteriormente no Encontro Nacional de Artes (ENEARTE) na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), fizeram com que meu corpo e minha arte ganhassem proporções nunca pensadas no meu processo de cura e fala de um assunto que ainda é tabu, o abuso sexual infantil. As regras de apresentação criadas por mim foram: sempre acontecer em uma sala escura onde possam entrar de três em três pessoas por vez (uma única vez houve exceção, todos que aguardavam pra assistir entraram juntos, sendo essa vez de maior lotação), também não pode fotografar ou filmar e, se caso se sintam a vontade, quem assiste pode intervir, como ocorreu de arrancarem o arame do meu corpo, o tempo de duração da performance é entre uma hora e uma hora e meia.
O roteiro da performance tem dois momentos ácidos, no primeiro quando ocorre o áudio emitido por um homem adulto falando à uma menina; muitas frases desconexas e constrangedoras são audíveis e remetem a um abuso sexual. No segundo momento, meu corpo é eviscerado, a performer revela a dor em contrações e líquidos. Por conseguinte, o público pode ver/sentir as minhas emoções angustiantes (medo, terror, raiva…) impregnados no corpo ali exposto. Segundo relatos do público, o áudio provoca revolta, raiva e nojo.

Remexo em algo íntimo e pessoal, mas foi a partir da performance que consegui um salvamento de mim mesma e de outras mulheres (irmã, primas, amigas…) e insurgindo contra a sociedade machista, opressora, abusadora de meninas, principalmente negras. Essa transformação me fez mudar de casa, de vida e lutar por justiça, lutar sempre pelo que é certo, eu precisava que ela fosse uma performance de libertação, um grito em meio a tantos anos de silenciamento. O áudio que acompanha o ato performático precisava ser o mais verossímil possível, com frases ouvidas pela vitima durante o abuso na infância, uso o arame para simbolizar o tempo que fiquei presa a esse ato cruel sem poder contar.
Epiderme Reminiscente foi a primeira forma de expressar todo sentimento de repúdio e raiva que me foi negado de um crime tão horrível, que acontece na maioria das vezes com meninas. Todas as reações e intervenções do público contribuíram para as curas internas e crescimento pessoal e profissional da artista, em cada vez apresentada foi surpreendente e chocante, principalmente, porque os homens que eu tinha algum tipo de relação próxima e que assistiam ficavam distantes depois que ela acabava, pareciam estar com medo e receio de me tocar novamente, já as mulheres que assistiam sempre foram muito incríveis durante e depois, sempre sensíveis esperavam com abraços e palavras de conforto, porém, pareciam destruídas psicologicamente, pois, esse assunto faz parte de suas vivências (de seus corpos), seja por experiência próxima ou por conhecer alguma outra mulher que passou por isso. Os homens não falam sobre isso entre si, mas como podem existir tantos abusadores que as mulheres conhecem e os homens não?
Só penso em todas as vezes que fui dita como raivosa quando expressei minha indignação por qualquer de abuso que presenciei ou ouvi. Finalizo citando a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adiche (2017, p.31) “o autor me acusava de ser “raivosa”, como se eu tivesse de me envergonhar por sentir “raiva”. Claro que tenho raiva. Tenho raiva do racismo. Tenho raiva do sexismo…”.

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Texto: Thalia Santos – Graduanda em Licenciatura em Teatro UFPA
Foto: Italo Amir