Se fantasiar de índio durante as festas de carnaval é correto? Melhor dizendo, é correto se fantasiar de índio? É muito comum as pessoas se valerem do argumento de que, estes, estão homenageando os povos originários de nosso país. Há aqueles também que preferem sedimentar seus discursos na ideia de que a fantasia seria a demonstração de apoio às causas indígenas e suas batalhas diárias pela garantia da dignidade e preservação de suas vidas. O presente texto se apresenta com a finalidade de suscitar a reflexão e elaboração de alguns questionamentos acerca do tema. Sigamos, caso seu intuito aqui seja sair de alguma possível zona de conforto.
Para facilitar a apreensão da discussão iremos nos valer de um caso recente que tomou certa proporção nas redes sociais. Trata-se do desfile feito por Alessandra Negrini com uma fantasia representando o estereótipo de uma indígena, no bloco Acadêmicos do Baixo Augusta no dia de domingo (16/02).
Após o ocorrido a atriz concedeu uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo salientando que “A gente tem que repensar isso. Os indígenas estão sendo mortos, são vítimas de um genocídio. E estão falando da minha fantasia, de apropriação cultural? É ridículo”. O genocídio dos povos tradicionais indígenas infelizmente é uma realidade de nosso país, qualquer indivíduo minimamente atento a discussões dessa natureza sabe disso, mas vamos pensar primeiramente no nexo argumentativo apresentado pela atriz para avaliarmos a correlação existente entre o fato dos povos indígenas sofrerem com o genocídio e a suposição de que ela ter utilizado uma fantasia com adereços indígenas iria colaborar na luta contra esse mesmo genocídio.
Fantasiar-se de um estereótipo identitário na prática faz com que as agressões existentes sobre determinado grupo social deixe de existir ou diminua? As Muquiranas, bloco de carnaval de Salvador, é um dos blocos de maior notoriedade da cidade que tem como tema principal a ideia de homens se vestirem de mulher. Até aqui não parece ser algo tão novo o que de fato não é, não é novo também a cotidiana realidade das violências que acometem as mulheres e que se intensificam em blocos como esse, o Ministério Público da Bahia torna isso evidente ao se posicionar quanto às denúncias recebidas e na elaboração de políticas públicas que visem atingir tal comportamento social. Festas em países como os Estados Unidos já tiveram e ainda tem a prática do blackface que consiste no fato de pessoas negras serem ridicularizadas para o entretenimento de pessoas brancas. Estereótipos negativos, vem nesse tipo de prática, associados à piadas sedimentadas na conduta assumida por pessoas brancas de se pintarem de preto com a pretensão de representar como pessoas negras falam e se comportam. Nesse cenário, é evidente que as práticas inerentes ao blackface sequer representam algo minimamente bem intencionado, ocasionando mais a reprodução de comportamentos racistas do que sua inibição.
O elemento que prevalece em todas essas situações, inclusive no caso de Alessandra, é a representação do outro por meio de uma fantasia ou adornos. Acho importante, todavia, apresentar um elemento de essencial distinção entre o caso de Alessandra e as demais situações, sendo nesse caso a intenção.
Alessandra em muitas de suas entrevistas trata de temas sensíveis à realidade dos povos originários ao falar sobre mortes, genocídio, “preservação da cultura deles” (nas palavras dela) e preservação do meio ambiente. A intencionalidade pode e deve ser levada em consideração, mas ainda que adicionemos a intencionalidade da atriz, o que faz da conduta dela ou de inúmeras outras singularidades bem intencionadas capaz de lutar contra a realidade que se coloca para os povos indígenas?
A resposta mais frequente para o questionamento supratranscrito costuma ser o fator da visibilidade, pois na medida que as pessoas veem o tema em canais com ampla visibilidade ou redes sociais, ficaria mais fácil a atuação e conscientização dos indivíduos sobre a temática apresentada. Um dos problemas é que, na prática, tal visibilidade se dá em um contexto de espetacularização da figura da indígena, a mesma indígena que é invisibilizada junto com suas lutas durante o resto do ano todo e de todos os anos que se passaram, a mesma indígena que é superficialmente representada dentro de um estereotipo social e historicamente construído que apenas alimenta outros tipos de preconceitos, ao invés de garantir maior compreensão da diversidade e percepção das especificidades culturais inerentes a cada um dos mais de 225 povos.
Ao se fantasiar de indígena, Alessandra Negrini o fez de uma posição de privilégio, a mesma posição que lhe permitiria fazer a abordagem da temática em qualquer outra situação e maneira. Por que dentre tantas possibilidades de tratar das atrocidades vivenciadas diariamente pelos povos tradicionais indígenas, as pessoas escolhem utilizar uma fantasia no Carnaval? Lutar pela salvaguarda de legislações de proteção do meio ambiente como os dispositivos constantes no Código Florestal não seria mais eficaz? Frequentar os Acampamentos Terra Livre anualmente ou ao menos em um ano, não seria uma melhor demonstração de apoio às lutas dos povos originários? Realmente seria mais adequado se valer das tragédias que afetam os povos indígenas cotidianamente para dar legitimidade ao argumento sobre o uso de uma fantasia ou seria mais adequado ceder por um momento o local de privilégio que ocupa para tornar os povos indígenas protagonistas da própria luta? Será que utilizar uma fantasia de uma indígena em uma festa que em certa medida banaliza lutas e movimentos sociais, seria a melhor forma de dar visibilidade para as atrocidades que afligem a existência dos povos indígenas?
O caso de Alessandra Negrini é apenas uma amostra do que mais acontece na realidade dos carnavais pelo Brasil, os argumentos por ela utilizados tão pouco são novos, a relevância de seu caso apenas se evidencia por sua figura pública. Durante anos de carnavais, fantasias, homenagens e o “apoio” que reflete nada menos que a pretensão de assumir o corpo do outro por um dia, não muda o fato de que nos deparamos com retrocessos nos direitos indígenas, não muda o fato de que ainda existem ameaças contra a preservação do meio ambiente e das culturas indígenas ainda existentes.
Infelizmente, homenagens superficiais e demonstração de um apoio que na verdade não existe, não muda o fato de que os povos indígenas vivem em um país racista. Na verdade, a fantasia se apresenta como um reflexo desse racismo.
É uma fantasia imaginar que se fantasiar ajuda de alguma forma pessoas que passam fome, são expulsos de seus territórios, criminalizados e executados por quererem conservar sua cosmovisão. A mesma cosmovisão que se apresenta com uma complexidade impossível de ser representada ou homenageada pela fantasia que você utiliza para ir a uma festa. Enquanto isso, outros supostamente representados por você precisam ficar acordados durante a noite para não serem mortos enquanto dormem. Sua diversão pode seguir noite adentro, para outros, a única coisa que resta é a tensão. No cotidiano dessas pessoas não existem fantasias.
Apesar de todo o exposto até então, a discussão ganha especial distinção na medida que lideranças do movimento indígena se manifestam em apoio a conduta de Alessandra Negrini, suscitando o debate acerca da relevância de se problematizar o uso de fantasias em uma festa como o carnaval. Em nota a APIB se manifestou em apoio a Alessandra Negrini salientando que “É preciso que façamos a discussão sobre apropriação cultural com responsabilidade, diferenciando quem quer se apropriar de fato das nossas culturas, ou ridicularizá-las, daqueles que colocam seu legado artístico e político à disposição da luta”.
A APIB, enquanto instituição criada por necessidades eminentemente políticas, precisa assumir em determinadas situações papel de mediadora de conflitos dentro de suas próprias lutas. A organização, em meio a um embate político precisa encontrar pontos de intersecção da maioria das ideias com a finalidade de englobar o maior número de pessoas que manifestem apoio às causas indígenas, que nesse contexto possui dimensão nacional. O que se nota, nesse caso, é a intenção de alguns líderes indígenas em conseguir mais pessoas que digam “eu apoio isso” do que pessoas que digam “lá vem esses indígenas chatos problematizar o uso de fantasia”. Ainda que esse “eu apoio isso” não se perceba em forma de conduta no cotidiano de boa parte das pessoas, a não problematização de questões como essa se evidencia pela infeliz necessidade de não priorizarmos a luta contra discursos e comportamentos dessa natureza em alguns casos, considerando o fato de existirem pessoas morrendo enquanto debatemos aqui sobre o uso de uma fantasia. Infelizmente, primeiro, a luta de parte do movimento indígena envolve a necessidade de ajudar as pessoas a entenderem que não somos uma ameaça para a sociedade, que não somos assassinos, não somos selvagens, criminosos, não retomamos terras se não houver uma razão legítima, daí o termo RE-tomar, precisamos acima de tudo desconstruir um estereótipo que se manifesta de múltiplas formas e que possui graus de negatividade.
Lamentavelmente, discutir sobre o uso de fantasias ainda parece ser para parte do movimento indígena uma luta para outro dia. O único problema é que não estamos falando até agora sobre lutas diferentes, uma prática recorrente não está desconectada do contexto geral que a legitima. Uma piada racista está inserida em meio a uma realidade com práticas racistas, e se nem o discurso preconceituoso diminui minimamente em virtude da utilização de uma fantasia, imagine só a conduta. O resultado disso é a pretensão de combater opressões diversas contra os povos originários, valendo-se de condutas recorrentes que dá em última instância, estrutura e legitimidade para a existência de violências tangíveis e simbólicas que afligem os povos indígenas. É o mesmo que tentar apagar fogo com gasolina.
Não é difícil compreender o posicionamento das lideranças indígenas em situações como a de Alessandra Negrini. Ao longo de muito tempo o movimento indígena conseguiu muitos de seus adeptos pelo fato de não tocar no ego e confrontar o privilégio de muitas pessoas que carregam em suas cabeças a convicção de estarem certos sobre uma luta que não são protagonistas. Nossa realidade não é muito diferente da luta para a conquista de direitos das mulheres, do movimento negro, da comunidade LGBTQI+ ou de tantos outros movimentos no que concerne à vinda de alguém em posição de privilégio dizer o que é certo ou errado, o que é bom ou ruim sobre posicionamentos contra violências e agressões que elas não vivenciam.
No que tange ao tema específico de se fantasiar em festas como o carnaval, o raciocínio a se fazer é bem simples, se você não apoia violências contra a mulher, negros, a comunidade LGBTQI+, roma (ciganos), indígenas, pessoas de qualquer religião ou classe social, é dispensável o uso de uma fantasia para homenagear ou demonstrar apoio às causas desses grupos, basta respeitar e efetivamente fazer algo para ajudar em alguma das lutas diárias desses grupos sociais, combatendo práticas racistas (desde situações extremas de agressões físicas até situações de agressão simbólica como o uso de uma fantasia), assim como discursos que legitimam tais práticas. Se você prefere se fantasiar para demonstrar isso, sinto em te informar que sua conduta apenas satisfaz seu ego e vaidade.
Os indígenas que morrem todos os dias continuarão a morrer, não terão a chance de imaginar um futuro de emancipação, conquista de direitos, e vida plena por meio de um ajuda apresentada por meio de práticas racistas.
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texto: Pakay Pataxó