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Humanidade e Covid-19: A face de uma natureza criadora em tempos de política destrutiva

“Quem poderia imaginar que estaríamos vivendo hoje a maior crise de nosso tempo?”

“(A humanidade) é a natureza tomando consciência de si mesma” (Elisée Reclus)

“O colapso ecológico não se resume à mudança climática, são vários parâmetros ou limites planetários; e, se um deles cai, se um deles é ultrapassado, tudo cai junto, é que nem um dominó. E o vírus está dentro desses subsistemas ecológicos, que constituem e sustentam a biosfera.” (Deborah Danowski para a Agência Pública)

Quem poderia imaginar que estaríamos vivendo hoje a maior crise de nosso tempo? O coronavírus, um inimigo biológico, ultrapassou a política na empreitada de causar a morte de grande parcela da população. Ano passado, era o Estado policial em pleno desenvolvimento no Brasil que nos preocupava, o sistemático extermínio da população negra e pobre. Contudo, essas questões não estão dissociadas, vemos que este mesmo projeto de extermínio está sendo gerido através desse mais recente perigo biológico. Quando o atual presidente Bolsonaro a todo momento tenta desmentir os fatos, como já é típico de seu modus operandi negacionista, ele se aproveita dessa situação de causas naturais para também amplificar e desvelar sua pouco velada política genocida.

Alguns meses atrás, na ausência da crise da covid-19, no domínio institucional e na grande mídia, havia uma atenuação dessa verdade do papel político de Bolsonaro frente a toda sociedade brasileira. O Estado e os seguidores do Bozo não têm como escapar, eles possuem sim responsabilidade sobre o que agora presenciamos, não adianta ter perplexidade diante da situação e ficar paralisado, o único elemento surpresa é o vírus (em parte, até porque os cientistas já previam seu perigo).

Lembremos que a última palavra, a palavra da razão, na decisão das diretrizes a seguir pelo país nessa crise deveria ser a da ciência e a da medicina. No entanto, o governo se opõe a elas. É verdade que muitas vezes as criticamos quando estas servem como instrumento de opressão, contudo, é inegável seu potencial positivo para a preservação das vidas. Nesse sentido, problemas como a tecnocracia ou a medicalização dos comportamentos são relegadas a segundo plano, e se torna capital o papel positivo da ciência e da medicina quando integrada a discussão e decisão democrática.

O maior problema, mais uma vez, é político. O Estado democrático de direito, intrinsecamente atrelado à ordem econômica global-capitalista, posterga a supressão dos processos de dominação, e mais que isso, investem nesses processos. Bolsonaro ainda se encontra no poder, e ali se mantem em aparente contradição às pretensões de racionalidade desse modelo político vigente pautado em uma constituição idealmente justa e amparada na tecnicidade da verdade científica. No fundo, continuamos reféns da lentidão burocrática das instituições que se mostram sempre tão distantes de nós, principalmente quando nada fazem para impedir a amplificação do genocídio em curso e das desigualdades sociais.

Façamos um rápido experimento mental impossível. Imaginemos que do dia para a noite esse modelo político seja modificado para um modelo socialista ou anarquista, uma democracia direta e participativa; será mesmo que nossa sociedade teria deliberado em um sentido diferente da calamitosa diretriz que hoje nos guia?

Lembremos que Bolsonaro foi eleito pelos votos dessa mesma sociedade, lembremos do papel dos meios de manipulação de massa no controle das mentalidades, dos desejos e das opiniões. De fato, ainda que a situação seja catastrófica, o desafio de se alcançar uma política socialista ou anarquista se dá no agora, no meio desse caos generalizado. Mais do que nunca o pensar e refletir tem se mostrado um fator mais que importante para esse processo prático, até porque assistimos ao avanço de ideais obscurantistas nascidos das ideologias fascistas e neoliberais.

No fundo, não erramos quando temos como norte a democracia direta, muito menos quando acreditamos em poder alcançá-la pela via da coletividade e da crítica radical. Não há outro caminho senão pela educação (como partilha entre plurais), pelo diálogo e pela crítica, pela vivência em sua crueza imprevisível. Se não for por papel ativo, por tentativa diária de forjar na realidade nossos ideais, não teremos como tirar a prova de uma verdadeira transformação de nossa relação no/com o mundo e do valor que esses ideais possuem frente aos propósitos de justiça.

Essa crise trouxe mais uma vez o que insistentemente se mostra em todas as crises, a urgência da modificação de nossas relações políticas, sociais e interpessoais, a urgência de procurar fazer valer nossos propósitos e ideias, a busca por uma sociedade cada vez mais justa. Contudo, isso obviamente não virá do dia para noite, é preciso dispêndio de muita energia revolucionária, é preciso não sucumbir a todos os empecilhos, sejam eles políticos ou naturais.

Olhando nosso atual contexto por um prisma complementar, senão intrínseco, a crise ocasionada pela covid-19, como toda pandemia ou epidemia, vem mostrar como qualquer sonho antropocêntrico de controle total da natureza é em vão – pensemos nos disseminadores da pós-humanidade residentes do Vale do Silício e nas tecnologias biomédicas que criam vida e manipulam organismos. Obviamente jamais seremos completamente soberanos perante ela, na verdade, a própria pretensão de soberania é por si um suicídio hedonista e narcisista. Sabemos bem que os que almejam cegamente mais poder agem em benefício próprio, não há causa social e compartilhada, apenas gozo irresponsável, apenas realização egoísta, vazia, suicida… São esses que assumem os postos de dirigência e nos conduzem a uma crise planetária, ambiental, em uma via de mão única, em direção ao colapso do equilíbrio da vida terrestre, onde os mais atingidos, os primeiros a serem atingidos, serão àqueles que se encontram na base da pirâmide social. A Pandemia de hoje é apenas um ensaio para essa crise ainda maior, esse desastre ecológico já em curso para o qual insistimos em fechar os olhos, e do qual ninguém pode escapar.

Temos incessantemente recebido sinais das consequências de nossas escolhas, dos processos de opressão e hierarquização que a humanidade estabeleceu em relação a si e à natureza. O Brasil contemporâneo, passando por provavelmente um de seus períodos mais conturbados, é arrebatado de tal maneira que emerge para nós a urgência de modificar radicalmente as relações político-sociais e a relação com a natureza. É preciso consciência e respeito social, é preciso consciência e respeito ambiental.

Creio que são esses os desafios de nosso tempo que a cada instante parecem se mostrar se não o derradeiro, pelo menos um dos últimos tempos. A última fronteira é a natureza enquanto humanidade (ou a humanidade enquanto natureza), nosso próprio chão e sustento, a qual testamos a paciência. Está mais evidente que nunca, ela será triunfante nessa batalha – mesmo que dizimemos nossos conterrâneos de Biosfera – isso se não usarmos o que ela mesma nos concebeu, nossa capacidade de nos harmonizarmos com ela, e entre nós mesmos, na medida do nosso limitado poder, ainda que nossos desejos desenfreados nos façam acreditar o contrário.

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texto: Rauan Fernandes