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Misoginia, Colonialismo, e as Forças Armadas

Sobre a cultura misógina das Forças Armadas, as atitudes coloniais em relação aos povos indígenas e quilombolas no Brasil, e um chamado à ação pedindo às mulheres que ocupem espaço.

AS FORÇAS ARMADAS

A guerra não é a mesma que era no século passado. Ela evoluiu para formas híbridas, e encontrou novas maneiras de silenciar a má conduta, e fatos gerais. Podemos não ver as armas ou os soldados, mas todos os aspectos de nossas vidas são afetados pelo trabalho que essas pessoas fazem. Toda vez que você viaja ou compra comida importada; na verdade, sempre que você se identifica como tendo uma nacionalidade, é por causa deles. Instituições militares de defesa são a razão pela qual Estados e Governos existem, porque as fronteiras importam, porque falamos uma certa língua, e porque você não pode simplesmente botar uma barraca na praia. Ainda assim, a presença militar pode se tornar ainda mais proeminente no cotidiano e durante tempos supostamente pacíficos.

A chance de um regime militar no Brasil tem flutuado em conversas desde antes da eleição de Bolsonaro. Ele notoriamente defende o regime militar, foi um oficial durante a ditadura, e disse que não aceitaria o resultado da eleição presidencial se não vencesse.

Aqui estão alguns números:

Em seus 27 anos de congresso, o Rio de Janeiro foi alvo de 36 operações das Forças Armadas (FA), a primeira em 92 também foi a primeira do país. Os casos em que as FA são usadas para controlar a população brasileira são chamadas de GLO’s, “Garantia da Lei e da Ordem”. Do total direcionado à violência urbana, 43% aconteceram no Rio. Enquanto a maioria dos outros estados tiveram 0, 7 estados tiveram 1, e 3 tiveram 2 — O Rio teve 10 (sem contar 1 operação que teve 15 fases). Agora que ele é presidente, a devemos ficar atentos com a hiper militarização do Rio se espalhando pelo Brasil.

Existem algumas implicações previsíveis com a presença militar em termos de segurança pública e “lei e ordem”. Os militares serão usados como policiais, a percepção pública do crime mudará drasticamente, e a privatização das prisões fará tudo altamente lucrativo. Mas o que estou interessada em explorar com este artigo é como as FA afetam mulheres em particular (dentro e fora da instituição), e as implicações sócio-políticas do domínio masculino histórico da área.

MISOGINIA

As mulheres foram introduzidas nas FA apenas recentemente. Houve pressão para que isso acontecesse durante a presidência de Dilma, já que ainda não haviam mulheres de alto escalão na área. Gostaria de lembrar a leitora, o leitor, e pessoas de variadas identidades dentro e fora do espectro, do caso “Bela, recatada, e “do lar””. Esses são métodos midiáticos passivos-agressivos de manter as mulheres “no lar” (e, neste caso, fora do “mais alto cargo” do país), mas também existem métodos mais agressivos, visíveis nas figuras alarmantes de crimes de ódio contra mulheres e pessoas LGBTQIA+.

Introduzir mulheres nas FA pode não ser a solução para a misoginia mas, depois de começar esta pesquisa, percebi que isso poderia trazer mudanças “rápidas” e significativas nas vidas de mulheres marginalizadas, para quem a interação com as FA é inevitável. Uma solução a longo prazo seria a desmilitarização de operações humanitárias e de saúde. O primeiro é apenas mais rápido porque já tem sido discutido por algumas décadas, e a mudança está acontecendo muito lentamente, enquanto o último tragicamente nunca nem entrou no campo da consideração.

Em 2011, foi publicado um estudo sobre a inserção de mulheres na Marinha. Esta é a opinião de um oficial sobre como esta mudança tem sido:


-Relato na página 90 de um artigo de 2011 chamado “Políticas Públicas de Gênero: A inclusão das mulheres na Marinha do Brasil como militares”.

Vamos desempacotar isso cuidadosamente. Em primeiro lugar, devo dizer que foi difícil escolher uma citação para analisar; este artigo está repleto de comentários machistas velados como “não-sexistas” porque são apresentados como elogios ou como simples fatos. Por exemplo, as mulheres trouxeram “uma maior importância a arrumação e a limpeza” para o ambiente de trabalho (página 91), como se uma grande coisa que as elas tivessem a oferecer fosse sua inclinação para o cuidado doméstico. Essa atitude ignora completamente a conjuntura sócio-política que levou as mulheres a verem as tarefas domésticas como sua responsabilidade (muitas vezes não remunerada), enquanto o homem sai para fazer o trabalho real (pago e relevante). Elas fazem tudo com mais “docilidade” e “carinho” (pg. 89), são mais estudiosas e caprichadas, não podem ouvir palavrão, e homens devem evitar ter conversas de “muito baixo calão” perto delas. (Além de acharem a presença de mulheres de maio “constrangedora” durante a educação física.)

Observe que as mulheres oficiais e praças são especificadas como “mulheres”, enquanto “homem” é omitido e implícito. Isso representa desigualdade na escolha de termo, uma linguagem que mais tarde ele descreve como tradicional. Ele especifica a masculinidade apenas quando descreve o sexo como o que os homens procuram. Isso é básico: tratar o sexo como algo que os homens querem das mulheres é simbólico do conceito de cultura do estupro. “Extraconjugal” e “lá fora” são termos alarmantes que exigem uma pesquisa urgente e detalhada sobre como esses homens tratam as mulheres locais nas regiões onde se instalam para trabalhar. Se a cultura do estupro emana de uma linguagem que é considerada tradicional, não podemos ignorar como ela revela uma atitude que pode se materializar a qualquer momento.

Infelizmente, não há figuras ou dados referentes a má conduta sexual por parte de soldados e oficiais, apenas incontáveis histórias de maridos traindo suas esposas.

FALTA DE DADOS

Há falta de dados sobre agressão sexual, assédio e outros ataques morais de gênero cometidos por membros das FA. Em um relatório de uma reunião da Comissão de Gênero do Ministério da Defesa (CGMD) em abril de 2015, uma representante da Secretaria de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto afirma que não há registro formal de casos de agressão porque o ““sistema” tende a abafar fatos ocorridos”. Logo em seguida, um representante da Secretaria de Organização Institucional expressa preocupação com o objetivo dessa pesquisa de dados. Ele afirma já ter feito a pesquisa, encontrando um número insignificante de casos, alguns dos quais incluem homens como vítimas. Portanto, sua preocupação é com a tendência ao ““denuncismo” vazio”, simplesmente ignorando comentários de mais de uma pessoa dizendo que não há figuras sobre o tópico (e nenhuma outra explicação clara do motivo para isso). Este ano, uma advogada naval me explicou que esses números não existem porque são considerados informações pessoais processadas pelos tribunais; dentro das FA, apenas o pessoal de Inteligência tem esses relatórios. Em outras palavras, relatórios e números existem, mas em sigilo.

Nesse contexto, o diálogo é formal, estéril e falso, especialmente quando admite que essas reuniões são uma resposta à pressão diplomática para alcançar padrões internacionais de igualdade de gênero. O comunicado de encerramento de um ministro descreveu a Suécia negando acordos diplomáticos com a Arábia Saudita e a Liga Árabe por causa dessa questão. O que é mais repugnante do que usar a islamophobia para mascarar o machismo?

A mesma reunião gerou um debate sobre o uso da palavra “equidade”, já que alguns temiam que isso pudesse ser interpretado literalmente; como a expectativa de 50/50 na participação de homens e mulheres nas FA. Isso seria tão ruim? Para eles, sim, porque isso significaria substituir a meritocracia por algum tipo de cota. Como se as mulheres tivessem a escolha de entrar nas FA, já que não há concursos o suficiente disponíveis. E quando tem, elas tivessem a motivação pessoal de serem moldadas a um ambiente violentamente masculino, onde nem mesmo as instalações são projetadas para acomodá-las.

O CGMD ainda garante que os espaços femininos sejam concedidos apenas dentro de um sistema meritocrático (2017). O que isto significa não é que as mulheres possam entrar quando são qualificadas e valiosas, mas sim quando elas efetivamente alcançam os padrões já existentes (masculinos) que foram estabelecidos pelas instituições militares há 200 anos.

A meritocracia nada mais é do que uma desculpa para marginalizar.

Nos registros de reuniões de 2014 já se revelam confrontos entre “conversas sobre mulheres” versus “conversas com mulheres”. Um coronel anunciou um workshop sobre a Proteção das Mulheres nas Operações de Manutenção da Paz da ONU, sobre como proteger uma população feminina local durante missões de “paz”. No entanto, não havia mais vagas disponíveis para membros da CGMD, o que levou uma mulher, membro da Escola Superior de Guerra a estabelecer a porcentagem embaraçosamente baixa de mulheres na instituição educacional (18%). Geralmente, esses baixos percentuais são atribuídos ao fato de que as mulheres só se inscrevem para o Exército voluntariamente, enquanto para os homens brasileiros, a inscrição é obrigatória. Todas as carreiras do Exército são voluntárias; os homens não têm obrigação de servir mais do que 1 ano, e esses 9-12 meses serem obrigatórios para os homens apenas garante a predominância masculina na área.

COLONIALISMO

Um oficial da Marinha me contou o conselho dado aos recém-chegados nos 9º, 6º e 4º distritos navais:

“As mulheres ribeirinhas são oportunistas, e vão atrás da pensão. Então use camisinha e não a deixe em qualquer lugar- dê descarga.”

O conselho é sobre descartar evidências de má conduta sexual enquanto a trabalho no norte do país. Esse oficial também me disse que viu colegas de trabalho gastarem mais de 20 mil reais em um fim de semana “fazendo festa” com mulheres locais. Alguns vivem vidas extravagantes em áreas carentes e gostam de chamar atenção por ter dinheiro. Esses distritos incluem a população mais vulnerável do país e também com o maior número de pessoas indígenas; inclui os estados Amazonas e Pará, onde o rio Amazonas se encontra com o oceano, entre outros. As populações Ribeirinhas são consideradas indígenas ou quilombolas.

Aqui está uma cultura dentro de uma instituição formada durante um período explicitamente colonial que, até hoje, normaliza homens se aproveitando sexualmente de mulheres “não-brancas”, indígenas e da diáspora africana. Mesmo que agressão sexual fosse denunciada, o que é raro, nem o agressor, nem as autoridades ouvintes seriam capazes de interpretá-la de um ponto de vista que não fosse tradicionalmente patriarcal e colonial. Não é provável que um ambiente que tem sido exclusivamente masculino por centenas de anos cultive uma cultura que rebaixe e objetifique as mulheres? Não há traços claros do colonialismo na descrição desses homens sobre as relações sexuais como sendo um “privilégio” para as mulheres?

“É um conselho que mostra a normalização do abuso sexual, muitas vezes no uso do poder sobre os mais vulneráveis. A desumanização dessas mulheres em descrevê-las como oportunistas desconsidera como suas condições de vida foram profundamente moldadas pela exploração contínua.”
-Jördis Spengler, socióloga.

O workshop “Proteção das Mulheres em Operações de Paz da ONU” de 2014 parece não ter sido frutífero até agora. Essas reuniões, grupos ou siglas institucionais fizeram avanços significativos no bem-estar das mulheres neste século, ou elas existem apenas como uma fachada das Relações Internacionais exibida para o Ocidente?

PREPOTÊNCIA

A Cartilha Maria da Penha descreve um aspecto relevante do agressor como “prepotência”.

Membros das FA tendem a ser atraídos pelo cargo exatamente pelo poder e influência que ele oferece. Isso se dá não apenas por causa da artilharia pesada, mas também no sentido de reputação, dinheiro, e acesso a espaços imponentes.

No Brasil, as FA não garantem apenas a soberania do Estado, elas são usadas para controlar a mesma população que se propõe proteger. Uma parte significativa da polícia já é militarizada, mas também contamos com as Forças Armadas para fazer o trabalho em ocasiões especiais, as tais GLO’s. Em muitos casos, essas operações visam prevenir a população de acessar terras e recursos; de ocupar seu espaço. GLO’s são usadas contra a população nas favelas, comunidades indígenas, quilombos e protestos.

A soberania da favela e sua população;

O acesso dos povos indígenas e quilombolas à florestas, manguezais, rios e outras fontes de sustento espiritual, cultural e prático;

A expressão das opiniões e frustrações através de protestos nas cidades;

Esses são conceitos considerados ameaças ao Estado e justifica declarar guerra contra brasileiros (as).

O artigo 331 do código penal garante o direito dessas autoridades de criminalizar o desacato. Como o desacato é um conceito abstrato, é fácil para policiais e soldados simplesmente prenderem quem os antagoniza de alguma forma. Não obedecer as ordens significa um ataque contra o “funcionamento” do Estado, resultando em até 2 anos de detenção. A não ser que o caso tenha motivações políticas, o que poderia ser classificado como terrorismo, resultando em uma nova sentença.

São eles que têm maior poder e influência — a definição de prepotência. Embora isso não seja evidência de um crime, mostra a urgente necessidade da conscientização de gênero para membros das instituições de defesa. E também representa uma cultura dentro das FA, e como mudar essa norma é um trabalho árduo em meio de tal rigidez.

O Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED), uma iniciativa multinacional um tanto independente, começou a realizar uma pesquisa sobre mulheres no setor de defesa na América Latina por volta de 2015. Hoje ainda não está claro qual foi o resultado e a disposição do Ministério da Defesa do Brasil de participar.

Talvez as questões da pesquisa já implorassem por significantes mudanças. A seção 5 do formulário, dedicada ao Ambiente de Trabalho, pergunta sobre a existência de um escritório dedicado ao bem-estar das mulheres, apoio à vitimas de violência doméstica, registro de casos de assédio e programas de educação sexual. Dos oficiais que conheci, nenhum está ciente da existência desses programas, desta pesquisa, ou se quer foram expostos ao tópico em geral.

CONCLUSÃO

Não podemos esperar até que haja um acordo unânime sobre o Patriarcado e o Estado serem problemas antes que possamos começar a implementar soluções. Precisamos fazer exigências agora. Houve e continuará a existir tremenda resistência contra mudança. O enfraquecimento de estruturas hegemônicas parece aterrorizante para aqueles que não conseguem imaginar suas vidas ou o mundo sem elas. Tudo se resume a uma total falta de criatividade, e privilégio o suficiente, para uma série de desculpas nos manter em um curso fatal.

Perder a fé na meritocracia pode mudar a sociedade para uma onde a palavra “marginalizado(a)” não terá uma conotação negativa. Os homens perdendo o direito de perpetuar linguagem e atitude misógina vem das mulheres ocupando espaço. Talvez isso se traduza em mudanças significativas na atitude militar em relação às mulheres em regiões vulneráveis.

Eu sinceramente não esperava concluir nada além de uma posição ainda mais firme contra ideia de alguém se afiliar às Forças Armadas. No entanto, será que as mulheres precisam de mais pessoas falando o que elas devem e não devem fazer? Talvez essa seja uma daquelas situações como o casamento gay; primeiro, precisamos torná-lo legal para a comunidade LGBTQIA+ antes que possamos derrubar a instituição em geral.

Então, aqui está uma mensagem para as mulheres:

Sua presença constrange homem? Ocupe esse espaço com orgulho!

O direito deles de serem ofensivos e “tradicionalmente masculinos” não é mais importante do que o seu direito de não ser dependente, de não ser assediada, de não ser humilhada, de não ser morta, de não ser estuprada, de não ser comprada, de não ser nada que você não queira ser.

Daí em diante, você pode ser tudo o que você quiser ser.

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LINKS de referência (em ordem de menção)

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texto: Mirna Wabi-Sabi

Originalmente publicado em inglês aqui.