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Negadores da Ditadura: uma nova roupagem para a hegemonia capitalista

Não houve “mal-entendido” quando o presidente disse que a liberdade e a democracia só existem quando “as Forças Armadas assim o querem”. Essa é a nossa realidade, e o que faremos sobre isso?

Este ano, o April Fools foi comemorado antecipadamente. 31 de março é o aniversário do golpe de 1964, que deu início a uma ditadura militar responsável pelo desaparecimento, assassinato e tortura de inúmeras figuras políticas. Isso causou trauma transgeracional em famílias, sem mencionar o atual controle dos EUA no país e na região. O presidente aprova e demonstra interesse em participar de comemorações, porque ele alega que não houve ditadura, era um regime autoritário necessário para evitar que o país se tornasse “vermelho”. Seus seguidores agora compõem uma nova onda de “negadores da ditadura”, alimentados por visões conservadoras anticomunistas (pró-EUA). Eles até mudaram a cor desse último Natal, e Papais Noéis azuis foram vistos pelo país. Toda essa situação parece uma pegadinha cruel, se não fosse pela visita inédita do presidente à CIA (a instituição que financiou a ditadura), e pelas conversas com Trump sobre o futuro da Venezuela.

Março também marca o aniversário do assassinato brutal de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes. Marielle era uma voz poderosa para todas as mulheres, para a comunidade LGBTQ+ e para os moradores das periferias que são alvos da opressão do Estado militarizado. Ambos deixaram membros da família devastados para trás e um exército de ativistas dedicados a proteger uns aos outros dos horrores que esta Presidência vem apresentando. Em sua tese acadêmica, ela esboçou a relação entre “militarização e [o] desenvolvimento do capitalismo”, denunciou ferramentas usadas pelo Estado para criminalizar a pobreza e expôs “uma nova roupagem para a hegemonia capitalista” nas politicas de segurança. Ela foi assassinada e, menos de 6 meses depois, Bolsonaro foi eleito.

As conexões entre seu assassinato e o presidente são claras: um dos homens presos era vizinho de Bolsonaro, eles foram fotografados juntos, e dois de seus filhos namoraram. Agora a questão permanece: quem ordenou o assassinato?

O que Marielle chamou de “mundo bipolar” da Guerra Fria e da ditadura brasileira “deu lugar a um único pólo de poder, liderado pelos monopólios e oligopólios capitalistas” que vemos hoje. A marginalização e assassinato de seu povo por esses poderes, pelas mãos das ilegítimas Forças Armadas, não é conhecimento que vai morrer com ela. Neste país, não conseguimos distinguir entre uma milícia criminosa, a polícia e as Forças Armadas. Nós nos acostumamos com as prisões por atacado de políticos, e de alguma forma continuamos a odiar os pobres acima de tudo.

Esta semana liguei para um Uber para mover um amplificador, e o motorista, percebendo que eu toco, me pediu para verificar um vídeo no Youtube. “Esse cara realmente tá tocando guitarra, ou é falso?” Era real, um guitarrista muito bom fazendo uma mistura de clássicos do rock. E então ele disse algo interessante: “Toda essa coisa falsa na internet não tá lá para enganar a gente, e nos fazer acreditar mentiras, está aí para fazer a gente não acreditar em mais nada. Eles tiraram a legitimidade das plataformas”. É nesse ponto que estamos na política, e na tal Democracia.

Podem alegar que a hegemonia é de esquerda, e que ser pobre significa ser criminoso, porque a criminalidade vem da falta de figuras paternas em lares negros e pobres. Admitem que a milícia matou Marielle, mas nunca que a milícia o faz através de autoridades eleitas e instituições governamentais. Isso porque não se importam com quem a matou, se preocupam em desmerecer a Mangueira que a honrou e venceu esse ano, e todos nós que a honram. E agora- alegam que a ditadura nunca aconteceu.

A verdade é o que for mais conveniente para mim: o ápice do individualismo capitalista.

Do Twitter do individuo.

Nós viviamosemos em uma ditadura

Negar algo existiae para que ninguém lute contra isso é uma estratégia eficaz; é um projeto de gaslighting de escala global. A mentalidade de Querer-enriquecer-a-qualquer-custo é alimentada à população através do mito da meritocracia, e da ilusão de liberdade do controle Governamental através da hiper militarização. Quando me mudei para os EUA na adolescência, a aula de história no ensino médio me ensinou que os EUAmericanos não são capazes de distinguir entre ditadura e comunismo. Isto é tão bem trabalhado como conceito quanto o que está por trás dessa onda de “negadores da ditadura”.

A influente mídia de direita argumenta que as Forças Armadas são necessárias para previnir que um governo eleito levemente de esquerda faça muito do que querem, esses indivíduos têm dito isso por um tempo, e agora há ainda mais pessoas que acreditam que essas alegações são legítimas. Retiramos uma Presidenta, a substituímos por um criminoso, e agora somos administradas(os) pela milícia. Uma Democracia severamente falha foi substituída por uma Ditadura Militar que mal se preocupa em se disfarçar. Onde, mas em um mundo distópico, isso é abordado como “Liberdade”?

“A disputa entre capitalismo e “comunismo”, principalmente durante todo o período da chamada “guerra fria”, após a Segunda Guerra Mundial, deu musculatura suficiente para que o modelo keynesiano resistisse aos ataques neoliberais. […]

Não é por menos que o declínio do modelo comunista, a partir dos anos 1980, foi mola fundamental para que o modelo capitalista, em curso até então, perdesse sua hegemonia para a política neoliberal.” (Marielle Franco)*

Essa hegemonia neoliberal é assassina. Assassinou a mulher que estava expondo assassinatos, bem como o encarceramento em massa e demais ações deshumanizadoras. Isso continuará acontecendo e é por isso que precisamos nos organizar bem e rápido. A resistência contra-hegemônica é autodefesa, e pode se manifestar de maneiras tão diversas quanto existem indivíduos na Terra. Não houve “mal-entendido” quando o presidente disse que a liberdade e a democracia só existem quando “as Forças Armadas assim o querem”. Essa é a nossa realidade, e o que faremos sobre isso? Onde devemos gastar nosso dinheiro? O que estamos lendo e de onde estamos aprendendo? O que estamos fazendo para contribuir para a nossa comunidade? – Qual é a nossa comunidade? As respostas não serão achadas em governos, eleições, estados de fronteiras e meios de comunicação de massa. Está dentro de nós, do que vemos como comunidade, e do que nossa comunidade precisa para prosperar. Mas tudo começa dentro de nós e é por isso que a compreensão filosófica e espiritual pessoal é fundamental. É fundamental para evitar que caiamos em armadilhas criadas por sistemas enganosos, que afirmam que a ditadura é liberdade, que meritocracia é anti-racismo, e que famílias patriarcais são naturais. Vamos encontrar nosso povo e nos organizar, senão serão os grandes Eles que nos encontrarão no que Chomsky chama de rebanho desorientado, e nos mandam em qualquer direção que seja mais proveitosa para Eles.

*Nota:

Em minha pesquisa, descobri que a tese de mestrado de Marielle Franco sobre a UPP, e a criminalização da pobreza pela política neoliberal, foi publicada em forma de livro pela n-1 cerca de 3 meses após sua morte. Enquanto publicaram em sua homenagem, também removeram o primeiro capítulo alegando que tinha “a única função de atender a critérios acadêmicos”. Quase 25% do trabalho foi cortado, onde a base teórica foi apresentada de forma eloquente. Isso significa que 91% das vezes que ela menciona a palavra “capitalismo” foram cortadas e 100% das vezes ela menciona “Keynes”. Todas as suas menções à palavra “comunismo” foram cortadas e, consequentemente, todas as menções à palavra “Marx”. Ela contextualiza a atual conjuntura política em termos econômicos, desde 1964, e a transição da economia keynesiana para o neoliberalismo após a Guerra Fria. Não vou especular sobre as razões pelas quais isso foi feito, me pareceu pertinente simplesmente apresentar o fato e destacar algumas das passagens mais notáveis ​​do capítulo.

ATO: DITADURA NUNCA MAIS

31 DE MARÇO, 2019, RIO DE JANEIRO

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texto: Mirna Wabi-Sabi