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Tarsila no MASP: Mancada Artística de São Paulo

O entendimento crítico da nossa identidade colonizada se manifesta não só na arte dela, mas também geria o movimento antropofágico do qual a artista fazia parte. Esse movimento visava minar o Eurocentrismo, ao fortalecer nossa autenticidade e conter nossa tendência a imitar o ocidente.

As obras de Tarsila do Amaral estão em casa, na terra onde nasceu e morreu a figura e seu movimento. É difícil aceitar que sua volta ao Brasil é inusitada- as filas estão monumentais, como se fosse nossa única chance de recebê-la. Apesar de todos os erros e hipocrisias presentes no museu, é uma uma oportunidade imperdível para quem tem o privilégio.

A fila se estende tanto para fora quanto para dentro do museu; a linha continua por algumas obras, até A Negra. Os clássicos Abaporu e Antropofagia carregam pinceladas brutas- visíveis apenas em pessoa e de perto. O sol encosta no cactus, o cactus encosta na pele, não há profundidade, e ao mesmo tempo a profundidade poética e estética domina.

A Negra e Abaporu foram degraus para chegar à Antropofagia, mas a organização do espaço obscura tal detalhe. A tinta óleo na tela de A Negra é cintilante e clássica. Enquanto em Abaporu e Antropofagia o óleo é crayon, resgatando maravilhosamente a pureza do imaginário.

E ela não só imaginava, viajava. As paisagens surreais são um dedo do meio que se levanta para europeus que voltavam para seu continente antes da revolução industrial e continuavam a pintar e vender mentiras. Tais obras são retratações deturpadas de animais, plantas e, principalmente, do nosso povo.

O Frans Post, por exemplo, “continuou a pintar paisagens brasileiras bem depois de sua visita ao Brasil (em meados do século 17), porque ‘vendiam muito bem’ – enquanto ‘nem um único estudo de animal ou planta de sua mão era conhecido’. Em outras palavras, ele estava pintando fantasias, e ele não é o único artista holandês em museus de hoje que fez isso.” (Legado e liderança de mulheres indígenas)

Ele não era tão grotesco quanto Albert Eckhout, cujo trabalho propagava uma imagem absolutamente desvirtuada de indígenas e mestiços brasileiros. Mas ele foi pioneiro, ao abrir caminho para artistas como Eckhout e plantando as sementes do exoticismo Europeu que ainda nos consome hoje.

Tarsila, por outro lado, parece falar, “Se vai ser assim, vamos pro psicodélico de vez”. O que é uma representação infinitamente mais autêntica e, paradoxalmente, realista. Tal era a visão que só poderia vir de uma mulher brasileira, com um entendimento revolucionário da identidade do povo dessa terra.

O entendimento crítico da nossa identidade colonizada se manifesta não só na arte dela, mas também geria o movimento antropofágico do qual a artista fazia parte. Esse movimento visava minar o Eurocentrismo, ao fortalecer nossa autenticidade e conter nossa tendência a imitar o ocidente.

Tarsila tentou resgatar a imagem dos Indígenas como um povo que valoriza a vida em Batizado de Macunaíma. O que é um forte contraste aos europeus, como Albert Eckhout, que voltavam para suas terras descrevendo-os como canibais animalescos.

Existem erros. Escreveram que a flor vermelha em Cuca precede a de Abaporu, sendo que a flor está em Antropofagia. A moldura mais tosca que já vi na minha vida engole Cuca, mas talvez ela só exalte a beleza da obra. As pessoas fazem pouco mais do que tirar selfies e matar tempo, já que ficar mais tempo na linha pra entrar do que tirando fotos é desconfortável. Porém, nenhum erro foi tão crasso quanto exibir o Frans Post, no andar de cima, e exaltá-lo.

O MASP abre o panfleto da exposição com a citação acima. Porém, esse é um fragmento descontextualizado do argumento da artista. A opinião de Tarsila era que “pintar paisagens e caboclos do Brasil não é ser artista brasileiro”. “Academias” refere-se ao método clássico, “corrompido”, Europeu. Isso certamente descombina com chamar Post de “cuidadoso” em suas representações. Esses tropeços expõem o MASP, o cartão postal de uma das metrópoles mais importantes da America Latina e uma referência cultural mundial, como uma instituição que impulsiona o Eurocentrismo e aborda conceitos críticos superficialmente.

Tarsila do Amaral não apenas discutia a Europa, mas também a Russia. O Operários foi inspirado pelo estilo de propagandas políticas Soviéticas durante sua visita à União nos anos 30. Tomara que tal detalhe não tenha se perdido na audiência “apolítica” que veio pela photo op. Os trabalhadores constituem a realidade brasileira tanto quanto negros, indígenas, e cristãos humildes.

Em geral, é visível que da década de 20 para 30 o trabalho de Tarsila escureceu. As cores dançantes tornam-se amarronzadas e acizentadas. A vibração da natureza, de repente, fica poluída; não há melhor retrato para o impacto da industrialização e do capitalismo.

Ao menos, as obras de Tarsila não foram expostas como o restante do museu. Havia paredes, em vez de lâminas de vidro, o que possibilita apreciar uma obra sem dezenas de outras no fundo. No segundo andar, obras de Picasso, Gauguin, Monet, Degas, Raphael e muitos outros flutuam congestionadas.

Na entrada, expõem a desigualdade de gênero que contamina o espaço. Dos clássicos, a minoria que listei acima é isenta de denúncias de misoginia ou pedofilia. Além disso, há obras que explicitamente glorificam abuso. Angélica Acorrentada, de Ingres, retrata uma menina que é nova demais para ter pelos pubianos e, acorrentada, oferece seu “amor” após ser salva pelo herói. O “herói ganha[r] o seu amor” só pode significar objetificação do corpo da nem-ainda-mulher e uma representação misógina do conceito de amor. No mínimo é indistinguível de pornografia, e violentamente dramatiza o erótico.

Mas isso não é anacronismo? Bom, mulheres e crianças não começaram a ser abusadas no século XXI. Glorificar homens abusivos na antiguidade representa perigos reais para a população contemporânea. É para censurar? Necessariamente, não. Porém, se for exibir esse tipo de arte, que seja de forma crítica. Pouco custa escrever textos mais sensatos, com análises em sincronia com os tempos de hoje. Anti-anacronismo e anti-censura não deveriam ser desculpas para alimentar conceitos retrógrados e continuar vivendo no passado.

Independentemente das reclamações e opiniões, ver aquela obra da Tarsila no canto da sala radiando nas brechas entre os corpos da multidão é o suficiente pra ligar os arrepios do corpo. Os vermelhos, em particular, se acendem e te atravessam. Seu legado é inegável na nossa identidade; uma identidade que é tão estética quanto existencial, além de política.

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Texto alternativo para Angélica Acorrentada:

Ingres, como também Picasso, Degas e Bacon, foram fortemente influenciados pelo artista francês Marquis de Sade. Famoso por sua sexualidade libertina, Sade tinha uma filosofia artística do século 17 e 18 que, muitas vezes, envolvia pornografia. Tal influência é exemplificada por Angélica Acorrentada.

Esta obra de Ingres “remonta ao poema épico Orlando Furioso (1516)”, em que Angélica, uma princesa pagã, resgata um cavaleiro ferido e os dois se apaixonam. É por isso que Orlando, um paladino famoso que era perdidamente apaixonado pela princesa, fica furioso e sai pela Europa e Africa- com o intuito de destruir tudo em seu caminho. Em algum momento, Angelica é acorrentada e oferecida como sacrifício para um monstro marinho. É então que um cavalheiro africano chamado Ruggiero a resgata e lhe dá de presente um anel de invisibilidade. Mais tarde, ela usa este anel para escapar de Orlando e sua loucura.

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texto: Mirna Wabi-Sabi

edição: Guilherme Ryuichi