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Novas formas de construção do saber em meio à atual geopolítica do conhecimento

A percepção da inconsistência entre a prática vivenciada e as teorias apresentadas dentro das academias, especialmente nos países do “sul global”, foi um passo importante para a desconstrução do discurso científico e do seu papel enquanto produtor e detentor de uma história única.

A percepção da inconsistência entre a prática vivenciada e as teorias apresentadas dentro das academias, especialmente nos países do “sul global”, foi um passo importante para a desconstrução do discurso científico e do seu papel enquanto produtor e detentor de uma história única. Historicamente, as epistemologias ocidentais dominaram as bancas universitárias e criaram limitações acerca de quais temas e quais pessoas devem ser ouvidas, majoritariamente essas personalidades eram brancas, masculinas, cisgêneras e heterossexuais.

A relação sujeito – objeto, explorada na obra “Erguer a voz: Pensar como feminista, pensar como negra” de bell hooks (2019), traz uma reflexão importante acerca do papel de autoridade que essas personalidades intelectuais imprimem nas pesquisas pelo mundo:

“Como sujeitos, as pessoas têm o direito de definir sua própria realidade, estabelecer suas próprias identidades, nomear sua história. Como objetos, a sua realidade é definida por outros, a sua identidade é criada por outros, sua história somente é nomeada de maneiras que definem sua relação com aqueles que são sujeitos.”

Ou seja, o sujeito é aquele que domina, e o objeto é o dominado. Essa relação fica ainda mais bem explicitada no pretexto-vídeo da Chimamanda Ngozi Adichie “O perigo da história única” (2009). Adichie nos fala da incoerência em crescer na Nigéria lendo histórias euro-americanas, cujos personagens e características geográficas não se assemelham, em nenhum aspecto, ao seu país e à sua cultura. Considerando o papel formador que a literatura e outras expressões artísticas e culturais têm sobre um indivíduo, especialmente num mundo globalizado – onde nós, do sul-global, temos mais acesso à produção dos países do norte-global do que do nosso país de origem – concluímos que muito provavelmente sua referência sobre si será o outro, e então a última frase de hooks passa a fazer sentido prático.

O perigo da história única recai, também, sobre a produção de estereótipos, sobre ouvirmos falar de um povo por meio de uma voz que não faz parte dele, mas que detém o poder de criar uma história definitiva sobre essa sociedade. Em “Microfísica do Poder” (1978), Michel Foucault traz reflexões acerca desse lugar da intelectualidade, onde ele afirma que a “massa” tem tanta ou maior capacidade que o intelectual para falar sobre determinado tema, especialmente no que tange a eles próprios, mas é a “sua posição de intelectual na sociedade burguesa, na ideologia que ela produz ou impõe” (pg.42) que traz ao acadêmico o privilégio de construir a história definitiva. O objeto de estudo vai interessar ao sujeito pesquisador na medida em que eles se mostrem passivos ou inferiores diante dessa força.

Nessa perspectiva, a produção dessa história única é um produto da colonialidade, e esta, segundo Walter D. Mignolo (2017), é o lado oculto da modernidade. A grande maioria, senão todos, os adventos da modernidade vieram do colonialismo – compreendendo a lógica de que a exploração colonial implicou na expropriação da terra, na exploração total da força de trabalho de indígenas e africanos escravizados, e na exploração dos recursos naturais. E foi isso que possibilitou (dentre outros fatores) a acumulação primitiva do capital, que favoreceu o desenvolvimento do sistema econômico capitalista. No entanto, mesmo que este período tenha historicamente ficado para trás, ainda hoje é nisso que se sustenta a produção capitalista global. Foi essa persistência do pensamento colonial que Aníbal Quijano chamou de Colonialidade.

Em meio a esse cenário foi que surgiu a ideia de “modernidade”, enquanto noção de “progresso”, que no meio científico causou grande impacto no desenvolvimento de tecnologias e na produção do racismo/sexismo epistêmico, onde se nega a natureza do indivíduo, encerrando ele como objeto, bem como sua capacidade de produção científica:

“[…] ocultadas por trás da retórica da modernidade [desde a Revolução Industrial até o século XXI], práticas econômicas dispensavam vidas humanas, e o conhecimento justificava o racismo e a inferioridade de vidas humanas, que eram naturalmente consideradas dispensáveis.” (MIGNOLO, 2017, p.4)

Em resposta a esse sistema de produção nasceram diversas correntes de pensamento cujo objetivo era a inversão dessa lógica genocida. De acordo com Mignolo (2017) “[…] a “colonialidade” já é um conceito “descolonial”[…]” (pg.2), ou seja, a própria percepção de que há ainda hoje, no século XXI, a perpetuação da mentalidade colonial do século XVI, já é um start para se pensar formas de reagir a isso. A partir desse processo temos a cada dia que passa mais e mais pesquisadorxs cujos locais de onde falam são essas ambientações historicamente invisibilizadas.

Um dos modos possíveis para se alcançar a (re)construção do saber hoje, é o incentivo à questionamentos (utilizo-me de “(re)construção” pois o que precisa ser feito é uma releitura de acontecimentos sobre outras óticas, não para descredibilizar toda a teoria anterior, mas repensá-la, a fim de se ter uma compreensão mais complexa). Questionamentos esses que são naturais e existem na base de toda episteme, mas que são suprimidos, sob o pressuposto de que a ciência (branca e eurocentrada) não deve ser questionada, especialmente se a voz que questiona for a de um “objeto”, e não a de um “sujeito”.

É necessário que se construa concomitantemente a isso um reconhecimento de quem se é e qual o nosso ponto de partida: é preciso se posicionar. Esse retorno às raízes promove força e conhecimento para continuar debatendo a existência das histórias únicas, possibilitando a escrita de outras histórias, compreendendo que toda ação e produção possui significado, sobretudo, um significado que resulta em medidas concretas, que podem colaborar para a perpetuação de um dominado, ou destruir a noção de um dominante.

Pensando de forma mais prática, o meio acadêmico precisa passar a trabalhar com métodos transdisciplinares para abordar temáticas específicas, com enfoque nos saberes tradicionais de comunidades historicamente invisibilizadas. Tal como declarou Foucault numa citação anterior, a “massa” (ou melhor dizendo, todo o corpo populacional que não possui voz “científica”) possui um saber extremamente importante e válido para tratar de questões pertinentes às bases de sua convivência social. Seria justamente através do encontro com esses saberes tradicionais que se pode atenuar a profunda diferença entre teoria e prática, e defender a produção e a permanência de vozes que antes foram censuradas, e que por essa mesma razão têm muito a dizer.

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REFERÊNCIAS:

ADICHIE,Chimamanda. O Perigo da História Única. Vídeo da palestra da escritora nigeriana no evento Tecnology, Entertainment and Design (TED Global 2009). Disponível em https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?nolanguage=pt

FOUCAULT,Michel. Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. In: ______.Microfísica do poder. 22. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 69-78. Disponível em https://pt.scribd.com/document/58287902/Os-Intelectuais-e-o-Poder-Conversa-Entre-Foucault-e-Deleuze

HOOKS, bell. Erguer a voz: Pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019

MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais. 2017, vol.32, n.94

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Por: Janayna Araujo