A essa altura o mundo todo sabe, evidentemente, sobre o novo coronavírus, o COVID-19; não só sabe como praticamente toda a terra foi atingida pelo vírus, alguns países mais e outros menos, mas esse não é o ponto. O que me chama atenção é o dito isolamento social, pois tal medida, mesmo sendo necessária no que diz respeito ao combate à disseminação do vírus, deve ser tomada com cautela e certa dose de reflexão, para não corrermos o risco de que se incorra não apenas no afastamento temporário mas na perda do caráter político (plural) da condição humana. O que denomino “caráter plural” da condição humana trata-se do fato de que somos seres plurais, onde ao mesmo tempo em que somos iguais enquanto seres humanos, somos diferentes enquanto pessoas. A possível “perda” desse caráter significa simplesmente que, em se tratando da sobrevivência da espécie, percebo que perdemos a noção de pessoa (que tem uma identidade), por isso chamo atenção para o nosso critério meramente utilitarista; isso me ocorreu (atingiu pessoalmente) principalmente por conta das recentes perdas na Itália e no Brasil que agora já ultrapassa os números chineses por exemplo, que (aparentemente) dado o número elevado de pessoas, esse caráter de “pessoa” se perdeu um pouco, dando lugar aos critérios “objetivos” de humanidade, muito por conta do terror que assola a sociedade neste momento.
Entendemos por condição humana as condições da vida humana na terra, ou seja, as condições da existência humana. Trata-se, pois, do ciclo biológico do qual a nossa vida depende para se atualizar a cada vez em relação à natureza (comer, beber, fazer as necessidades fisiológicas, etc.), dos produtos que inserimos no mundo por meio da “desvirtuação” da natureza para facilitar nossa própria sobrevivência (p. ex. toda tecnologia), e da “ação”, entendida como a relação entre (sem mediação da matéria) os homens, como por exemplo o diálogo (Cf. ARENDT, 2018, p. 9).
Diante disso, o que nos preocupa frente ao “estado de exceção” instaurado — onde se segue não mais a simples “ordem” dos governos segundo suas leis, mas um modelo de regras pensado especificamente para o estado atual de coisas, que nesse caso trata-se de uma calamidade pública — é o último ponto, pois fica difícil estabelecer relações saudáveis entre as pessoas, ainda mais em se tratando de um vírus de fácil transmissão, que pode nos levar a ver o outro não mais como um semelhante (um par) mas como um possível vetor do vírus.
A dimensão da liberdade é (de maneira razoável, ou seja, por razões autoevidentes) suprimida em detrimento da segurança, não apenas individual mas de toda a “humanidade”, fazendo com que aqueles que optem pela liberdade nesse momento sofram as consequências de suas ações (como previsto pelo próprio conceito de liberdade).
O aspecto para o qual quero chamar atenção talvez nem seja algo tão teórico mas prático, do ponto de vista do que podemos fazer neste momento. Nós estamos perdendo o caráter plural da condição humana diante do “estado de exceção”? O que parece é que o mais essencial da condição humana neste momento é a dimensão biológica (necessidades impostas pela natureza), assim, não nos importamos com as milhares de vidas que estão sendo perdidas nesse processo de “sobrevivência”? A “primazia” ou destaque da condição biológica (trabalho, metabolismo do homem com a natureza) quando num estado de coisas que chamamos de “normal” não fica evidente porque vivemos numa sociedade que funciona em certa medida para que a maioria (conforme nossos critérios “democráticos”, utilitaristas — ao meu ver) consiga se estabilizar e não se preocupar tanto com as condições biológicas, passando a se preocupar mais com a produção (e consumo) — ressalto aqui o que mencionei sobre tratar dessas questões de uma maneira não muito teórica, mas prática.
Penso que a quarentena é realmente importante para que se reduzam os danos causados pelo vírus mas também penso ser importante a preservação da política, pensando política como a relação que estabelecemos uns com os outros, relação que está sendo – no mínimo – “danificada” durante este processo que estamos passando, mesmo que somente a distância por enquanto. Senão, o que nos restará depois?
Penso o ser humano enquanto animal racional e político (desmembrando o conceito você perceberá que minha definição contempla as três atividades supramencionadas: trabalho, obra e ação), de modo que nossa humanidade somente é exercida de maneira plena quando podemos perceber essas três atividades funcionando plenamente, ou seja, quando temos garantias para a nossa sobrevivência biológica, quando dispomos de artifícios intelectivos e transformadores da natureza ao nosso redor para a facilitação da manutenção de nossas vidas e quando podemos nos “reunir” com os demais para exercer nossa dimensão política. Não penso em política no sentido de instituição, mas em algo mais próximo do que entendemos quando falamos em “relações sociais”. Pensemos na definição aristotélica de homem como animal político. Sendo assim, a preservação da política seria nesse sentido de preservar nossos vínculos como pessoas; refletir sobre como estamos encarando isso tudo não significa esquecer da sobrevivência, mas lembrar tanto da sobrevivência quanto da vivência.
Assim, minha proposta, refletida com bases na preocupação que expus aqui, trata-se de uma proposta de exercícios de reflexão com vistas a concebermos alternativas para o restabelecimento do exercício político. Não o exercício das instituições políticas, mas nosso exercício enquanto indivíduos e coletivamente enquanto uma comunidade, que agora se vale somente dos meios tecnológicos para manter a chama da política acesa dentro de nós que se conserva e se atualiza a cada vez que nos reunimos com vistas a um curso de ação.
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texto: Paulo Alexandre Trindade Freire
(Graduando do curso de Filosofia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro do Programa de Educação Tutorial em Filosofia (PET-Filosofia/UFBA). CV.)
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Referências e algumas sugestões de leitura
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo; revisão técnica e apresentação Adriano Correia. — 13. ed. rev. — Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2018.
BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: Curso no College de France (1989–92). Trad. Rosa Freire d’Aguiar — 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Esclarecimentos, de Giorgio Agamben, tradução.
Coronavírus — Foucault e a Peste por Rafael Leopoldo.