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Artista em Quarentena

“Esse texto é sobre autobiografia, sobre nudez de ideias tomando corpo e expressando-se. Tô falando da experiência pessoal de quarentena, que tem consciência dos privilégios de ter casa, comida, água, luz, terra pra plantar, álcool, internet e gente pra me socorrer em caso de emergência.”

Esse texto é sobre autobiografia, sobre nudez de ideias tomando corpo e expressando-se. Tô falando da experiência pessoal de quarentena, que tem consciência dos privilégios de ter casa, comida, água, luz, terra pra plantar, álcool, internet e gente pra me socorrer em caso de emergência.

Reconheço que esses privilégios me ajudam bastante a manter a saúde mental estável, pelo menos na maior parte do tempo, minha rede de família e amigues/amores tem grande contribuição nessa área. Todavia eu também tenho minhas inquietações, convivo desde muito nova com a depressão. Ela desencadeia muitas vezes ataques de ansiedade, então o humor fica volátil, fico sem dormir e tenho crises de choro, entre outras coisas. Depois de uma dessas crises decidi que quero falar e escrever sobre isso que pode parecer comum, mas me desperta reflexões sobre o íntimo e o coletivo.

Eu vivo como artista independente, me expresso através de diversas linguagens. Faço feiras expondo e vendendo minha arte com esculturas, acessórios, objetos criados a partir da reciclagem de despojos da indústria e coisas que a natureza me fornece. Trabalho também em educativos de frentes de luta como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), museus e galerias. Performo, tatuo, trabalho nas artes visuais, audiovisuais e táteis, fotografo, edito vídeos, tiro um som que gosto e experimento (sem compromisso com as técnicas) e escrevo… é disso que vivo, com muita simplicidade e dificuldade. Foi sim uma escolha, uma escolha difícil pra quem não vem de uma raiz financeira muito privilegiada, porém é o que sei fazer.

Muitos dos trabalhos são de graça ou mal remunerados, pois sim, até companheires de esquerda, que acham que valorizam a cultura, costumam, nas prática$ de chamar pra trabalhos, desvalorizar na hora de pagar. Então eu me viro em outras áreas quando minha arte não fecha o aluguel e minhas contas. Estava trabalhando de freela (sem contrato físico, nem direitos), em uma microempresa de orgânicos antes da quarentena, isso ajudava não só nas contas como na alimentação. Desde que me posicionei optando por não sair (e isso também é privilégio), não surgiu a opção trabalho remoto. Não recebo bolsa, não tenho ninguém que possa me pagar pra trabalhar de casa, não tenho família rica, casa própria, carro, ninguém que possa me mandar mesada. Isso acaba pesando sobre meu parceiro, que além de morar comigo, no meu aperto é quem salva comida/contas, divide as tarefas e cuidados com a casa, gatinhos, além de me acalmar nas crises. Isso não é uma lamentação, continuo desenvolvendo projetos pra esse período e pra variar, usando a criatividade pra me virar. Mas esses são pensamentos que me atravessam quando as coisas tão pesadas. Sou muito agradecide pela minha realidade, apesar de tudo.

As redes sociais não são só pra me expor, expor minha arte e manter contato, é também meu portfólio. Não é uma marca de moda, pois raramente surgem vendas realmente efetivadas por elas, não é uma grife (cobro menos do que as peças valeriam em qualquer mercado, seja ele de arte ou da moda), mas é uma das formas de levar, pra algumas bolhas, parte do que produzo, além de divulgar o trabalho do qual vivo.

TUDO QUE PRODUZO É POLÍTICO

Política não é só literal, é parte da vida e expressão de todes. É sobre procurar ser pessoa ativa nas práticas cotidianas à curto e longo prazo. É sobre expor, em qualquer lugar, transparecer e estar nu, de tantas formas… É sobre pensamento crítico e ação. É sobre ética na vida prática, pessoal e profissional.

Meu ativismo é de esquerda e não partidário. Meu ativismo ainda resiste à definição de militante, pois não creio que uma palavra que se refere à um sistema bélico de mudança e domínio, seja o caminho. Revolução não é só sobre ataque, mas sobre debater poder, estratégias de resistência de acordo com suas possibilidades. É também o encontro de discurso e prática nos contrastes, sem imposição e submissão das diferenças, sem pasteurização das realidades. É anular o abismo das desigualdades sociais e transmutação dos preconceitos (próprios e alheios) em educação. Aprendo cada vez mais sobre isso lendo, vendo e ouvindo resistências nativas brasileiras e quilombolas, resistências que subvertem os papéis normativos de gênero e resistências culturais dos interiores, ouvindo as pessoas mais antigas e suas cirandas, seus repentes… Respeitar todas as formas de luta também é revolucionar nosso desconhecimento sobre resistências de séculos. Descolonizar nossas referências se tornou urgente, além de ser muito didático pra nos opormos às tecnologias que caminham pela necropolítica.

Estou falando isso tudo porque nossos olhos e ouvidos estão muito acostumados a se voltar pro exterior (o que é bom quando desperta mais empatia do que julgamentos e condenações). Mas para aprender a lidar com o ego, que às vezes pode nos isolar de uma série de realidades, é também necessário perceber-se, voltar-se pro interior. Quando a gente não pensa sobre nosso lugar e história, sobre nossas raízes, evitamos lidar com o que pode estar em desequilíbrio com como percebemos o mundo, isso pode nos isolar (mesmo estando fisicamente dentro de coletivos, cenário diferente do atual). Aprender a lidar melhor consigo é também aprender a se relacionar melhor com o mundo. Vivências e políticas não predatórias são cada vez mais urgentes.

Falar de forma bem humorada e caricata sobre assuntos sérios além de útil é um talento. A diversidade das formas de expressão artísticas e políticas, são potência, aumentam o alcance e o número de pessoas que se afetam e trocam sobre o assunto.

Gongação (shade) e ironia podem ser remédio ou ofensa, depende da dose. Se tratar com mais gentileza pode mudar como tratamos as outras pessoas. Aprender a rir de si mesmi pode ajudar a potencializar o amor próprio mais do que rir do outru. Podemos melhorar isso para rir com outru.

Fora as reflexões sobre interior e exterior, penso que é um momento de repensarmos nossas práticas e pensamentos capitalistas e neoliberais. Sem hipocrisia, sei que é como vivemos ou onde estamos inserides, nas políticas econômicas e normativas. Mas gostaria de lembrar também que em grande parte do mundo, escravidão e LGBTQI+fobias já foram legalizadas por um sistema vigente. Ainda hoje são em alguns locais. Quem são as pessoas mais vulneráveis, qual o gênero, sexualidade e cor, das que mais sofrem violências *cistêmicas*, das que mais são assassinadas? Questionar faz parte de evoluir.

Gostaria também de lembrar das pessoas que mais vão adoecer ou morrer nessa pandemia. É legal tentar conscientizar quem ainda não tá levando a sério? Ok, é sim. #ficaemcasa Agora mais ainda, pois o presidente Bolsonaro é, no mínimo, um desserviço à população. Porém vamos lembrar que a maioria da população brasileira, que é pobre, é de trabalhadorxs. São pessoas que estão circulando nas ruas, nos transportes coletivos, são pessoas que trabalham no supermercado ou com comida, são as pessoas que fazem entregas, pessoas exploradas por empresas que se aproveitam do sucateamento dos nossos direitos trabalhistas, são as pessoas que trabalham em serviços gerais, empregadas domésticas, que trabalham na precariedade, sem EPI, pra pessoas que tem o privilégio de não precisar limpar a própria sujeira e organizar a própria bagunça. São pessoas que estão recolhendo nosso lixo infectado, sujo e na maior parte das vezes, misturado com coisas que poderiam ser recicladas.

Autônomis, profissionais do sexo, tatuadoris, massagistas, artistas, etc… Grande parte sem FGTS pago corretamente e em dia, sem plano de saúde, dependendo do SUS e seu projeto de sucateamento pra posterior justificativa (de uma injustificável privatização parcial ou total). Pasmem, nós estamos todes dependendo da boa vontade do governo e da pressão da população que tá #emcasa pra terem uma renda mínima, isenção nas contas nesse período de pandemia e quarentena.

Não vamos esquecer também das pessoas adultas, idosas e crianças em situação de rua, vivendo à margem de uma competição desleal e meritocrática, que adoece qualquer saúde mental. Não vamos esquecer do quanto a política excludente em que vivemos, criou abrigos terrivelmente mal estruturados e desumanizados, não vamos esquecer que as práticas manicomiais de confinamento só pioram o estado de quem já está em situação vulnerável e de trauma. Válido lembrar também que muitos processos neuroatípicos são agravados pela normatividade de gênero, sexualidade, padronização dos corpos e abandono (do estado e das famílias, quando estas existem), levando muitas vezes a vícios em drogas como remédios, cigarros, álcool e outras drogas.

A prefeitura da minha cidade, que hoje é considerada exemplo nas medidas durante a epidemia, anunciou 200 reais (ainda não sei se em espécie ou cartão), pras famílias mais pobres. Eu lhes pergunto, independente do tamanho da família, como vocês viveriam nesse período, sem sair de casa, com somente 200 reais?

Anunciou que, caso faltem abrigos para pessoas em situação de rua, irá arrendar hotéis (o que faz a gente questionar se esses abrigos são suficientes em número ou qualidade), ou seja, um problema anterior que é obrigação da prefeitura, ficou no abandono e pode agora na emergência, ter uma atenção e uma resolução improvisada. Como sempre as medidas que seriam e são necessárias, viram soluções imediatistas.

Também anunciou um cartão com um valor x pra ser gasto em itens básicos (o prefeito não foi muito específico nessa parte). Também anunciou um valor de 500 reais pra quem fez o MEI até 01/03/2020. Além de ser pouco, nós que somos freelas sabemos que o MEI é pago mensalmente, nem todes temos essa grana todo mês. A conclusão é que muitas pessoas, assim como eu, que não aderiram ainda ao MEI e quando precisam emitir nota, usam o MEI de alguém de confiança, ficarão sem auxílio. Quem é independente e não tem MEI, é pra chorar ou morrer?

Tinha também um edital aberto, que ainda não consegui acessar, que transformou uma verba que já era anteriormente destinada ao projeto arte de rua e se transformou em arte na rede. Essa verba da cultura é só um princípio, pois não está contemplando todas as linguagens artísticas, não propõe uma verba especialmente pro momento da pandemia e não é favor. A secretaria de cultura junto à fundação de arte precisam, podem e devem fazer bem mais que isso, pra todes artistas da cidade continuarem em casa, se alimentando e pagando as contas.

Na esfera federal, estadual e municipal, não cortar e parcelar posteriormente as contas de água, luz, gás, telefone e internet (pra quem tem o • p r i v i l é g i o • de ter isso pra se comunicar, estudar e curtir um lazer cultural), não é suficiente. O certo é ISENÇÃO PELO PERÍODO DE QUARENTENA e não parcelamento posterior, como está sendo feito em alguns poucos casos. Pois quem ficou nesse período sem trabalhar remuneradamente, não vai depois ter esse dinheiro a mais e vai se endividar. Se é pra ficar em casa, é obrigatório que governantes eleitos usem os fundos e impostos pra abarcar quem mais precisa, nem que pra isso precisem taxar as poucas pessoas que acumulam grandes fortunas. No mais, nosso papel social enquanto pessoas justas, preocupadas com a vida em geral (e não só a nossa e a de familiares), responsáveis com a não disseminação do vírus COVID 19, é mais do que ficar em estado de vigília do outro, denunciando cada ser que vê na rua, mas cobrando o mínimo, que o estado ainda não está fazendo por si. O pouco que as autoridades fizeram não é pra gente jogar confete, afinal pesar de terem sido eleitos pra isso, estão sempre em campanha, ligados que o holofote está sobre eles e a história vai cobrar. Pressionem o governo e não as pessoas.

Todo mundo tem direito de bater o que quiser na janela, mas não podemos nos contentar com tão pouco. Nós precisamos ficar mais atentos às medidas que estão sendo tomadas, cobrar e pressionar aqueles que estão no poder, focar nossa energia em medidas que atendam a todes, evitando culpabilizar a população que está na rua (seja o motivo dela justificável ou não, não está ao nosso alcance saber ou condenar), pois isso não muda significativamente o que precisa ser feito em grande escala. Se nem o presidente leva a sério a quarentena, não tem como resolver com cada pessoa, através de uma postagem ou mudança de foto no avatar.

Seguem duas notícias da mesma data em que escrevo este texto, ambas da Agência Câmara de Notícias. A primeira é referente à lista de serviços essenciais em caso de calamidade pública, parece que a lista só cresce. Incluíram atividades religiosas (Igrejas) e lotéricas na lista de serviços essenciais, mesmo com a recomendação da quarentena.

“A decisão do governo de tornar as atividades religiosas essenciais durante o período da pandemia trouxe preocupação para alguns deputados. O governo havia editado decreto (10.292/20), listando as atividades essenciais que não poderiam ser objeto de restrições durante o combate à pandemia. Nesta quinta-feira, o decreto foi alterado para incluir mais atividades – são 40 agora – e acrescentou as igrejas.
Legislação de fevereiro de 2020 (Lei 13979/20) deu ao presidente da República a prerrogativa de decidir sobre as atividades essenciais.”
Fonte: Agência Câmara de Notícias

A segunda notícia é sobre a proposta de renda mínima que ainda vai pro senado ser votada e deixa muita a desejar nos pré-requisitos para recebimento do benefício emergencial.

“Inicialmente, na primeira versão do relatório, o valor era de R$ 500,00 (contra os R$ 200,00 propostos pelo governo). Após negociações (…) o Executivo aceitou aumentar para R$ 600,00.” Fonte: Agência Câmara de Notícias

Um dia antes, a proposta da oposição unificada abrangia mais gente.

Agora, falando da esfera privada, podemos tentar nos organizar coletivamente, já que as autoridades por si não fazem tudo que deveriam. Podemos além de pressionar o estado, divulgar trabalhos, fazer vaquinhas, doações, consumir de pessoas, pequenas lojas, marcas e microempresas, evitando grandes corporações, repensando consumo no geral e suas problemáticas…

As pessoas que remuneram outras pessoas, sejam elas funcionárias, freelas, ou diaristas, devem repensar sobre a real necessidade de mantê-las em serviço presencial e na medida do possível adiantar o pagamento delas, mesmo sem a presença e sem exigir que depois haja compensação das horas não trabalhadas, mais as horas que elas geralmente trabalhariam. Isso chega a ser utópico, mas tenho certeza que tem gente em condições de confiar que pode pagar adiantado o serviço, deixar pra ele ser feito depois da quarentena. No sítio onde moro, no início dessa semana, tiveram pedreiros trabalhando num estacionamento, enquanto o grupo do whatsapp da vizinhança se enchia de #ficaemcasa . Provavelmente os pedreiros vieram por necessidade do dinheiro e não por falta de responsabilidade, amor à própria saúde e vida. Agora me pergunto, o que motiva quem contrata, a decidir que é prioridade acabar uma obra de estacionamento nesse período? Acredito que poderiam ter adiantado o dinheiro e ter a obra concluída após a quarentena. Cada um sabe de si, beleza, mas já que tanto se fala que “é momento de pensar no coletivo”, além de não estocar, que pensemos de forma prática e confiemos em adiantar quem mais vai ser prejudicade financeiramente, nesse período.

(Quem se interessar, tem um site oficial que está movimentando o apoio popular à renda básica.)

Buscar as medidas sociais de prevenção, de efetivação da quarentena pelas famílias que mais precisam, talvez seja a maior homenagem que poderemos fazer a todes profissionais de saúde que tão combatendo na linha de frente. Todes podemos salvar vidas se conseguirmos caminhar do individual pro social. Se não nos contentarmos com as micro políticas (também importantes) e alimentarmos o interesse e a manifestação na esfera da macro política.

Cuidar de si é também cuidar de como nos relacionamos com outros seres. Gente, bicho e planta. Vamos atentar a como o planeta tá reagindo às reduções de emissão de poluentes em poucas semanas. Cuidar de outros seres é também cuidar de si. Apoiar a luta contra o agronegócio e pelo incentivo ao plantio de orgânicos com preço acessível é essencial. Mais do que nunca, nosso corpo e ideia de coletivo tá em jogo. Na medida do possível, com humor, empatia, reflexão e prática, a gente pode deixar de atrapalhar. Melhor ainda, podemos ajudar a manter a vida, a saúde mental e física das outras pessoas.

Sempre em devir, não temos como prever nada, mas estamos num período de grandes transformações a curto prazo, seja qual for a fonte da fé, dá pra sentir.

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Texto: Beat do Mato