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Homens Infantilizam Mulheres e Fetichizam o Poder

“Esta semana, a influenciadora de direita Sara Winter doxxed (expôs) uma criança de 10 anos que estava prestes a fazer um aborto. A história que Sara inventou centrou-se no direito da criança ao aborto, e não no destino de seu agressor e de outros como ele.”

[Aviso de gatilho: estupro, pedofilia]

Muitas mulheres se identificam comigo quando digo que recebi mais avanços sexuais agressivos quando criança do que quando adulta. Na verdade, meus relacionamentos adultos foram todos iniciados por mim. Quanto mais velha fico, menos desejável me torno para os homens. Você pode pensar que é por causa da maneira como a idade afeta o corpo, mas não é. Ainda pareço muito jovem, provavelmente por causa da franja e rosto infantil. Com o passar dos anos, o que mais mudou foi a minha atitude. Tornei-me mais confiante, segura de mim mesma, emocionalmente equilibrada e mais resistente à pressão social. Essas qualidades costumam ser indesejáveis ​​para os homens.

A decepção é visível no rosto de um homem quando a pressão para realizar um ato sexual não funciona em mim. Quando criança, decepcionar um adulto é horrível. Pode ser doloroso e ter efeitos psicológicos de longo prazo. Quando se trata da questão da pedofilia, o discurso tende a focar muito mais na capacidade da criança de consentir, e não tanto no motivo pelo qual os homens desejam essa dinâmica de poder na relação sexual. Claro, algumas pessoas gostam de “dominação”, mas não estamos discutindo BDSM aqui. Estamos discutindo abuso de poder.

Por que homens gostam de exercer poder sobre outra pessoa? Isso se aplica a todos que lidam com um homem em busca de poder — um chefe, um marido, um presidente, um padre, etc. Enquanto as crianças são pressionadas a ter arbítrio sexual, as meninas crescem para serem infantilizadas na vida adulta. A discussão falha quando tenta decidir quanta autonomia uma criança deve ou não ter, em vez de focar na verdadeira questão: por que homens infantilizam as mulheres e fetichizam o poder?

Os homens são socializados para nunca permitir que suas vulnerabilidades sejam vistas, nem para os outros, nem para si próprios. O sexo, no entanto, é uma experiência incrivelmente vulnerável, então não é uma surpresa que eles possam responder violentamente as suas parcerias sexuais. Eles, então, começam a buscar relacionamentos sexuais que não os façam se sentir vulneráveis, exercendo controle sobre o outro. O controle é tanto físico quanto psicológico, por isso é totalmente inútil verificar se a outra pessoa na parceria está feliz com a situação.

Os homens são aqueles que precisam ter suas ações examinadas, não as crianças.

Para alguns, isso pode parecer óbvio — não é. Ainda é incrivelmente comum que os homens sejam vistos como vítimas do irresistível apelo sexual de meninas. Esses homens não estão apaixonados por essas jovens, eles estão apaixonados pelo quão as meninas os fazem se sentir poderosos. Eles estão apaixonados por si mesmos e por sua própria busca por domínio. Assim que uma garota se torna mulher e começa a revelar pensamentos próprios e se torna menos complacente, a paixão se desgasta e ela é difamada.

Pense em Lolita — Uma obra literária clássica, muitas vezes vista como uma obra-prima, que nada mais é do que propaganda patriarcal que centra a narrativa da vida de uma criança na perspectiva do homem mais velho que deseja possuí-la. Em sua mente, sempre que ela exibe pensamentos independentes, ela está sendo manipuladora e se aproveitando de seu amor por ela. As pessoas parecem esquecer que esta leitura da situação é dele, e certamente está completamente distorcida. Ele é um personagem que teve um gosto de domínio e se sente injustiçado quando esse domínio é recusado a ele mais tarde.

No Brasil, até outras mulheres reproduzem essa retórica em detrimento de meninas. Esta semana, a influenciadora de direita Sara Winter doxxed (expôs) uma criança de 10 anos que estava prestes a fazer um aborto. Ela havia sido estuprada pelo tio desde os 6 anos de idade, e a história que Sara inventou centrou-se em questionar o direito da criança ao aborto, e não no destino de seu agressor e de outros como ele.

Um show da Netflix chamado Nanette revelou como não são apenas as pessoas conservadoras que reproduzem esse ponto cego da responsabilização do homem. Hannah Gadsby efetivamente nos deu um sermão sobre todos os artistas abusivos que muitos de nós ainda adoramos, não apenas os indivíduos, mas o olhar masculino persistente ao longo de toda a história da arte.

Mesmo dentro da filosofia anarquista, rotineiramente negligenciamos a problemática de certos intelectuais. Michel Foucault, o estudioso mais citado na área de humanidades, fez campanha contra as leis francesas da idade de consentimento. Ele publicou cartas em jornais, reuniu outros intelectuais e falou publicamente sobre como achava que havia uma maneira natural de praticar a pedofilia não-abusiva. E não foi só ele, a petição para abolir as leis de consentimento na França reuniu mais de uma dúzia de intelectuais famosos, incluindo Derrida, Sartre e até Simone De Beauvoir.

Notemos que a dominação masculina foi vista como “natural” por milênios, e o feminismo não abrirá mão da resistência a esse conceito tão cedo. Este exercício filosófico contra “uma lei” tem consequências concretas na vida das crianças e na socialização das mulheres. Quando essas relações entre homens mais velhos e meninas menores de idade são romantizadas, permitimos a perpetuação de uma dinâmica patriarcal que se infiltra em vários aspectos de nossas vidas — político, social e pessoal. Sem mencionar que esses exercícios intelectuais se tornam um refúgio para abusadores reais.

O pretexto filosófico de ser contra os valores moralistas cristãos e as leis opressivas do Estado foi usado pelo conhecido anarquista Hakim Bey. As pessoas que o conhecem podem não saber que ele era um pedófilo de carteirinha. E aqueles que sabem, tendem a argumentar que suas ideias anarquistas ainda são valiosas, como se estivessem aparte da pedofilia. Suas ideias anarquistas são inseparáveis ​​dos princípios do NAMBLA (“Associação Norte-americana de Amor entre Homem/Menino”, do qual ele era membro). O único propósito de estabelecer sua famosa zona autônoma era para que ele pudesse exercer poder sexual sobre crianças com impunidade. Estas não são ideias valiosas, são uma cooptação dos valores anarquistas por um pensador perturbado que usou a ideologia como uma máscara.

O movimento e a ideologia anarquista serão enfraquecidos enquanto nos recusarmos a abordar esta questão. Como podemos responsabilizar as pessoas dentro da ilegalidade? No anarquismo, ilegalidade não significa o direito de abusar de poder livremente. Que tal, em vez de perguntarmos às crianças se elas concordam com o que aconteceu com elas, começamos a perguntar aos homens por que diabos eles fetichizam mentes facilmente influenciáveis?

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Nota final

Para saber mais sobre se a pedofilia é um problema masculino, usei o seguinte artigo como referência: Women also sexually abuse children, but their reasons often differ from men’s.

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texto: Mirna Wabi-Sabi