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Quem Tem Medo De “Marxismo Cultural”?

“[M]arxismo cultural,” aquela teoria da conspiração que visa ridicularizar quem não está convencido de que a “economia mundial” de hoje é uma expressão orgânica e bela da natureza humana.

A Red Scare (“Ameaça Vermelha”) está de volta, pelo menos neste Brasil abastecido por Trump. No início deste mês, a Gods and Radicals, uma editora anticapitalista e descolonial, publicou seu primeiro livro em português (BR). As respostas revelam algo que “nosso” presidente já deixou claro: há raiva e terror generalizado do comunismo. Neste artigo, discutirei como os dois polos da conjuntura política atual reduziram o anticapitalismo a uma tendência ingênua e enfurecedora.

“Eu não sou Marxista, identifico-me como anarquista, e me faz muito feliz pertencer a uma organização que consegue unir diversas ideologias, crenças e perspectivas — a Gods and Radicals. Rhyd, um dos fundadores da organização e autor d[o livro Tudo Que É Sagrado É Profanado], é Marxista e faz um trabalho maravilhoso mostrando o lugar que o Capitalismo toma em nossas vidas. Este livro, mesmo sendo um curso sobre Marxismo Pagão, não é simplesmente sobre Marxismo. É sobre a consciência do mundo em que vivemos e sobre como esta realidade infelizmente não deixa de ser Capitalista. O Marxismo é apenas uma [das] ferramenta[s] que podemos usar para analisar a fundo a trajetória que a humanidade tem tomado.” (Trecho do prefácio escrito por mim).

Por todos os lados, existem equívocos sobre como o marxismo existe na vida das pessoas. Não me refiro à ignorância sobre o que a ideologia significa, mas sobre o papel que ela desempenha na vida das pessoas que se identificam como marxistas ou que têm um vago interesse no tópico. Isso nos leva ao “marxismo cultural,” aquela teoria da conspiração que visa ridicularizar quem não está convencido de que a “economia mundial” de hoje é uma expressão orgânica e bela da natureza humana. Por outro lado, isso também nos leva ao dogma comunista, que não pode imaginar consciência de classe sendo expressa fora de um modelo stalinista ou maoista. Enquanto um lado culpa pessoas pobres pelos males da sociedade, o outro culpa as pagãs, ao lado de movimentos negros e LGBTQIA, por usar a “política de identidade” para confundir a juventude e dividir a classe trabalhadora (com a ajuda financeira da Fundação Ford).

Os dois grupos mencionados acima se expressaram calorosamente nos comentários da publicação do nosso livro marxista pagão. Ou, como apontou o tradutor do livro, Thiago Sá: “Olha o bolsonarismo e o marxismo ortodoxo se encontrando e se beijando na boca.”

Os ‘ameaçados por vermelho’ acreditam em uma coisa simples: comunismo = socialismo = esquerdismo. Todos os três são uma ideologia, enquanto o capitalismo não é. O Free Market nada mais é do que uma estrutura natural que consistentemente recompensa quem “rala.” A ideologia, por outro lado, é forçada no cérebro das pessoas e se espalha como um vírus. Alguém disse que é satânico, mas versões menos engraçadas aparecem alegando que os “infectados” devem ser exilados, torturados, agredidos ou exterminados. A raiva está intrinsecamente ligada ao terror, uma raiva contra aquilo que roubará o que mais temos medo de perder: nossas vidas seguras e confortáveis.

Ninguém vive de forma completamente segura e confortável, nem mesmo as pessoas ricas. Afinal, elas ainda são pessoas que ocasionalmente sentem o peso esmagador da existência. Mais importante ainda, essas pessoas ricas precisam lidar com a miséria que sua riqueza cria. A vantagem delas é ter uma imensa quantidade de recursos para ajudar com isso. É isso que estamos tentando proteger? As maneiras elaboradas pelas quais lidamos com a alienação e a miséria que nos cercam?

O que é visto como ingenuidade por trás do anticapitalismo é a rejeição de todas as coisas maravilhosas que o capitalismo nos oferece. Precisamos ter passado por uma lavagem cerebral, porque certamente não temos consciência de como é um mundo sem o capitalismo, e de quanto o odiaríamos. Quem diz isso está certo, não vivenciei um ambiente livre de capitalismo. Mesmo no meio da floresta, chego lá usando sapatos fabricados industrialmente e que causaram poluição e exploração. Isso é parte do problema. Quem diz aquilo está consciente de quão odioso é o sistema atual? Mesmo se sim, pensam que devemos aceitar não ter alternativa?

“Quem tem medo do lobo mau… que tem medo de viver a vida sem falsas ilusões”
(Edward Albee, escritor de “Quem tem medo de Virginia Woolf?”)

Os ‘vermelhos clássicos’ também estão zangados e assustados. Qualquer pessoa que não se identifique exclusivamente como trabalhadora os enfurece. Ela é uma ameaça ao poder centralizado do Estado de que os comunistas ortodoxos “precisam” para serem bem-sucedidos contra os Estados capitalistas. Ou seja, o poder centralizado que eles já viram funcionar na Rússia, China e Cuba. Assim como o capitalismo não é uma ideologia enquanto o comunismo é, ser ‘trabalhador(a)’ não é uma identidade enquanto ser ‘negro(a),’ ‘homossexual,’ ‘indígena,’ ‘mulher’ e ‘pagã(o)’ certamente são. E essas identidades são criadas por “reformistas pós-modernos que tentam confundir a juventude e a classe operária” para fins capitalistas.

Para comunistas ortodoxos, a ‘identidade’ pagã é particularmente enfurecedora, porque é incompatível com a pessoa notoriamente ateia que Karl Marx era. No entanto, até Marx reconhecia que a espiritualidade tinha o potencial de fortalecer a resistência anticapitalista; para ele, não era uma ferramenta usada contra pessoas trabalhadoras, e sim uma que veio delas. Vamos considerar também que, no século XIX, “religião” significava a Igreja e qualquer outra coisa quase nem era considerada humana. Foi Stalin e Mao quem exigiram o ateísmo como política de Estado comunista. Há também essa exigência no anarquismo?

É importante lembrar que no fim do século XIX, pessoas africanas escravizadas estavam sendo “concedidas” a “liberdade” por conveniência ao Estado e às senhorias. É ótimo poder se inspirar pelas ideias de Hegel sobre como superar a “dialética do senhor e do escravo.” Porém, se fôssemos fundamentalistas com os textos de Hegel da maneira que alguns são com os de Marx (ou Bakunin), ainda estaríamos discutindo o direito de pessoas africanas à cultura espiritual; à história e à liberdade (que, por sinal, não foi uma ideia do “velho” que Marx fez questão de criticar).

Muitos monumentos soviéticos existem na forma de partidos e movimentos políticos, e nossa comunidade não é um deles. Hoje, o presidente do Brasil representa a versão moderna da ditadura dos anos 60, que também é um monumento vivo desse período. Olavo de Carvalho, o “Steve Bannon brasileiro,” é o intelectual responsável por restaurar a integridade dos negadores da ditadura de extrema-direita. Nós não poderíamos estar mais longe disso também.

Se não queremos fazer parte dessa dicotomia, o que queremos?

Queremos viver respeitando nossa relação com a Terra e com o Selvagem. Nas sociedades ocidentalizadas em que vivemos, o capitalismo e o cristianismo são responsáveis por arrancar a existência humana da natureza. Queimamos, pavimentamos e esterilizamos nosso caminho para a autodestruição. A reconstrução depende da destruição do capitalismo, e isso não pode acontecer sem profundas mudanças espirituais e emocionais em todos e todas nós. Mudanças espirituais e emocionais são pessoais; elas não podem ser distribuídas ou consumidas, e certamente não podem ser depositadas em uma urna eletrônica. Cada pessoa tem suas próprias necessidades e desejos, e sua própria maneira de resgatá-los. Somos uma plataforma na qual as pessoas podem compartilhar seus processos, e se conectar a uma rede internacional de solidariedade e resistência contra o Estado, o capitalismo, o patriarcado e a supremacia branca.

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texto: Mirna Wabi-Sabi, editora da Gods & Radicals, e membro do coletivo de mídia Plataforma 9.