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Aprendendo a se mobilizar em tempos de repressão, crises climáticas e guerras

“MaisAmor MenosCapital é um exemplo de organização eficaz para a paz porque luta para fornecer assistência humanitária às pessoas desabrigadas e famintas. Esse formato de mobilização também serve como treinamento para “populações estabelecidas” para lidar com a “instabilidade massiva” causada pelo deslocamento, já que o modelo militar de consumo exponencial de recursos e fortalecimento de fronteiras não é viável.”

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O consumo de óleo e emissão de gás carbônico das Forças Armadas dos Estados Unidos podem ser comparados a de um país de tamanho médio (classificado entre o Peru e Portugal). Como uma instituição de tal magnitude, ela tenta sistematicamente captar recursos de outros países, mas vendo quantos recursos ela consome levanta a questão de quanto do que é apreendido é para satisfazer sua própria demanda. Em outras palavras, parece que precisamos que o exército acesse os bens que ele mesmo precisa para existir.

Duas preocupações surgem desse cenário. Em primeiro lugar, não é possível que o exército seja mais sustentável porque sua existência é insustentável por si só. Estamos falando de uma instituição secreta, operando dentro do segundo país mais poluidor do mundo, que polui tanto quanto outro país de tamanho médio. A operação do exército estadunidense é a de um círculo vicioso. “Preciso existir para estar ativo em algum lugar e preciso estar ativo em algum lugar para existir”. Quanto mais recursos são apreendidos de outros lugares, mais a instituição pode expandir, e quanto mais ela se expande, de mais recursos ela precisa. Essa expansão desempenha um papel significativo, como o de qualquer outro país, exacerbando as implicações (negativas) das mudanças climáticas, exceto que as Forças Armadas dos EUA não são suscetíveis ao mesmo escrutínio que outros países, porque grande parte de sua nocividade é ‘classificada’ (confidencial).

Em segundo lugar, que outro objetivo as Forças Armadas dos Estados Unidos têm a não ser expandir constantemente para se sustentar? Se é para garantir Direitos Humanos, temos que concordar que essa estratégia não foi a mais eficaz e talvez seja hora de tentar algo novo. Neste ponto, muitas das crises de direitos humanos a serem enfrentadas são de sua própria autoria — a desestabilização do Oriente Médio é o mais notório dos exemplos, algo que o próprio Trump criticou quando candidato em 2015. Outras crises humanitárias para as quais os militares podem ser necessários são os impactos das mudanças climáticas, que também são crises que o exército exacerba mais do que mitiga.

O exército existe por qual outra razão se não para combater os problemas que ele ajuda a criar? Não é coincidência que aqueles que defendem o uso da Força contra países não-ocidentais em nome dos Direitos Humanos acreditem em sua própria Superioridade; seja econômica, religiosa, racial ou em geral. Defender os Direitos Humanos tende a significar “Desenvolvimento,” “Democracia” e “Liberdade,” que são conceitos inventados por quem tem os meios da Força — o exército e a administração encarregada dele. O conceito de Democracia não é primordial para os eleitores e certamente não justifica sacrificar a si mesmos ou a suas famílias para defender tal ideia no exterior. O que importa para eles é a oportunidade de opinar sobre como seu ambiente é moldado, e garantir que eles tenham o que precisam para viver. Votar não é a única maneira de alcançar isso, é a única maneira oferecida.

A Superioridade, no entanto, é para alguns um conceito que vale a pena defender até a morte, em todas as partes do mundo. Ela justifica a dominação a qualquer custo, inclusive ao custo de assassinatos em massa. A melhor maneira de operar com esse propósito é matar de forma eficaz, com tecnologias inovadoras, e abafar a disseminação de informações confidenciais. Muitos de nós andamos com dispositivos televisivos e de gravação em nossos bolsos, e ainda assim parecemos estar cada vez mais distantes de sentir a revolta que tantas pessoas sentiram durante a Guerra do Vietnã (quando a TV desempenhou um papel crucial na disseminação de informações confidenciais sobre os horrores envolvendo as forças armadas dos EUA).

A administração de Trump e a maioria, senão todas, das administrações estadunidenses anteriores ocultam a real intenção por trás do Intervencionismo dentro do chamado compromisso com os Direitos Humanos. O mesmo vale para a alegação de que não é possível fornecer necessidades básicas como saúde e moradia à população. Os Reality Shows com pessoas ricas mostram como a falta de riqueza não é o problema, e sim a maneira legitimada pela qual a riqueza é acumulada por alguns. A defesa dos Direitos Humanos tem pouco a ver com o voto, sem falar nas forças armadas e suas intermináveis buscas por recursos. Aqueles e aquelas que demonstram preocupação com os Direitos Humanos o fazem a despeito das Forças Armadas, nas ruas, como demonstrado pelo evento MaisAmor MenosCapital.

Mais Amor Menos Capital é um evento que acontece no centro do Rio de Janeiro uma vez por ano, nos últimos 7 anos. É uma festa de Natal organizada por um pequeno grupo de anarquistas e inúmeras pessoas em situação de rua. Os meses de mobilização envolvem a coleta de doações de presentes e alimentos, a preparação de uma refeição completa para o maior número possível de pessoas, e o agendamento de apresentações culturais, oficinas e palestras. Lá, qualquer pessoa tem acesso gratuito a um banho, um corte de cabelo, roupas, presentes, e jantar. Pode-se assistir um debate ou uma palestra, apresentações de dança e música, e as crianças podem pintar ou aprender capoeira. Higiene, roupas, alimento e cultura são direitos humanos básicos, e esse evento os oferece àqueles sem o acesso. O objetivo é empoderar as pessoas mais marginalizadas.

No dia 20 de dezembro de 2019, participamos do evento e conversamos com os organizadores sobre como o projeto é recebido pelo governo brasileiro e pelas autoridades de segurança pública, como a Polícia Militar. Elisa Quadros, uma das organizadoras do evento, foi duramente perseguida por uma administração de esquerda e se tornou uma das prisioneiras políticas mais conhecidas do país. Ela foi presa, ameaçada, exilada e viveu em clandestinidade por anos. Em nossa entrevista, Quadros revela que hoje vive com habeas corpus. Durante os 7 anos do evento MaisAmor MenosCapital, houve uma mudança drástica de administração no governo brasileiro. Em 2013, o PT estava no poder pelo quarto mandato consecutivo. Desde então, houve um impeachment, um vice-presidente de direita no poder e um presidente ainda mais de direita eleito. Não houve lugar nesse espectro político aparentemente amplo onde o trabalho de Elisa Quadros não foi reprimido.

A maioria da esquerda brasileira interpreta essas mudanças políticas dos últimos 7 anos como intervenção dos EUA. Alguns apoiadores do PT acreditam que a revolta política de 2013, na qual Elisa Quadros participou em protesto contra os “Grandes Eventos” (Copa do Mundo e Olimpíadas), foi resultado de uma interferência estrangeira com o intuito de desencadear um golpe. A CIA já interferiu no governo brasileiro antes, e a primeira visita de Bolsonaro como presidente aos Estados Unidos ter sido na sede da CIA serviu como evidência de que a história estava se repetindo.

A percepção pública da vida pessoal de políticos está diretamente relacionada à opinião pública de suas capacidades profissionais. Da mesma forma que políticos são eleitos pela imagem que projetam como indivíduos, eles precisam começar a se comportar o mais terrivelmente possível como pessoas para que possamos começar a perceber o quão terríveis foram suas práticas profissionais. A popularidade fala mais alto do que as ações, o que informa o modus operandi militar de hoje — o Soft Power. Será que isso está começando a mudar? Líderes mundiais como Trump, Bolsonaro e Netanyahu estão se comportando inegavelmente mal; “pegá-las pela va….”, acusar o Leonardo DiCaprio de incendiar a Amazônia, e extorquir jornalistas são poucos exemplos de comportamentos repreensíveis desses homens. Paralelamente, vemos demonstrações grotescas de Supremacia Militar que rompe com o alcance inconspícuo da influência estadunidense.

Este é um momento tão oportuno quanto qualquer outro para pôr em prática as palavras de Martin Luther King: “Aqueles que amam a paz precisam aprender a se organizar de maneira tão eficiente quanto aqueles que amam a guerra.” Mais cedo ou mais tarde, as Forças Armadas dos EUA entrarão em colapso, tanto por sua taxa de crescimento insustentável quanto pelos sintomas da crise ambiental que exacerbam. De acordo com o relatório da Faculdade de Guerra do Exército dos Estados Unidos sobre as Implicações das Mudanças Climáticas para o Exército dos EUA,

“O aumento do nível do mar deslocará dezenas (senão centenas) de milhões de pessoas, criando instabilidade massiva e duradoura. Essa migração será mais acentuada nas regiões onde a vulnerabilidade climática é exacerbada por instituições e governanças fracas e pela sociedade civil subdesenvolvida. A história recente mostrou que migrações humanas em massa podem resultar em maior propensão a conflitos e turbulências à medida que novas populações se misturam e competem com populações estabelecidas. Eventos climáticos extremos mais frequentes também aumentarão a demanda por assistência humanitária militar.”

A “demanda por assistência humanitária militar” está ligada ao dever de um exército de proteger as fronteiras de uma nação. As crises humanitárias enfraquecerão as fronteiras entre os países “desenvolvidos” e os “subdesenvolvidos,” e proteger essas fronteiras continuará sendo responsabilidade dos militares estadunidenses. Como podemos nos preparar melhor para esse destino iminente?

MaisAmor MenosCapital é um exemplo de organização eficaz para a paz porque luta para fornecer assistência humanitária às pessoas desabrigadas e famintas. Esse formato de mobilização também serve como treinamento para “populações estabelecidas” para lidar com a “instabilidade massiva” causada pelo deslocamento, já que o modelo militar de consumo exponencial de recursos e fortalecimento de fronteiras não é viável. Esse treinamento pode trazer mudanças necessárias ao sistema que nos leva em direção à destruição e turbulência. “Populações estabelecidas” em todo o mundo terão que adotar estratégias como essas para lidar com os impactos das mudanças climáticas globais. Nunca é cedo demais para começar a se mobilizar.

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PLATAFORMA 9 é um coletivo aberto de mídia da região do Rio de Janeiro.

Mirna Wabi-Sabi: texto, vídeo, tradução. / Patrick Farnsworth: entrevista, áudio, edição.