Categories
Artigo

VIVA AS PUTAS DE SAN JULIÁN

As cinco mulheres paralisaram suas atividades e não atenderam os milicos argentinos, expulsando-os do bordel La Catalana com vassouras, paus e insultos que expressavam a indignação diante daqueles que atuaram diretamente como algozes de operários grevistas nos fuzilamentos em fazendas no extremo sul da América do Sul.

Há exatos 100 anos, em 17 de fevereiro de 1922, cinco trabalhadoras sexuais se rebelaram contra uma tropa de soldados. Seus nomes: Consuelo García, Angela Fortunato, Amalia Rodríguez, María Juliache e Maud Foster. Eram mulheres de origem local e imigrante, tinham entre 26 e 31 anos de idade e também ficaram conhecidas como As Putas de San Julián, o nome da cidade na província de Santa Cruz, território  controlado pelo E$tado argentino.

As cinco mulheres paralisaram suas atividades e não atenderam os milicos argentinos, expulsando-os do bordel La Catalana com vassouras, paus e insultos que expressavam a indignação diante daqueles que atuaram diretamente como algozes de operários grevistas nos fuzilamentos em fazendas no extremo sul da América do Sul.

Ao se recusarem a atender os fuziladores, essas mulheres, nas palavras do anarquista historiador Osvaldo Bayer, foram “os únicos seres valentes que foram capazes de qualificar de assassinos os autores da matança de operários mais sangrenta de nossa história” (BAYER, 2018 [1980]: 253-254).

Como resultado dessa paralisação – que pode ser considerada uma greve sexual dentro da greve operária – as cinco valentes Putas foram levadas para a delegacia diante da hipocrisia do povoado e, por fim, foram detidas. Não há, ainda, um consenso sobre o que aconteceu com elas após essa situação. Afinal, além de mulheres elas eram Putas, uma dupla condição de subalternidade diante de perspectivas androcêntricas e machistas.

Essa é uma das muitas histórias possíveis que ainda estão por ser escritas sobre as mulheres que viveram no contexto das Greves Patagônicas (1920-1922), que foram uma sequência de greves de teor majoritariamente anarquista. Essas greves representaram um levante sistemático contra a ordem capitalista e latifundiária, assim como foi sistemático o extermínio das pessoas grevistas realizado na aliança civil-militar entre  E$tado argentino sob o governo do partido Radical de Hipólito Yrigoyen, forças armadas e milícias paramilitares, com financiamento dos empresários multinacionais.

As Putas não eram declaradamente anarquistas nem feministas, mas suas ações foram além das palavras ao enfrentar a ordem estabelecida de servir sexualmente aos homens que as pagassem. Sob as lentes feministas atuais, essa pode ser considerada uma ação autodeterminada por ditar as regras sobre o próprio corpo e retomar o meio de produção sexual, considerando o sexo como uma atividade econômica que contribuía para manter girando a roda da economia, assim como todo trabalho assalariado – e, muitas vezes, também não remunerado.

A história dessas anárquicas mulheres foi pouco contada até pela imprensa anarquista de maior destaque, já que naquela época – assim como, por vezes, ainda hoje – os editores abordavam as mulheres e o feminino com características subalternizadoras e pejorativas[1]. Os enfrentamentos seguem com antigos e novos desafios, e a genealogia das mulheres e dxs dissidentes de costumes, gênero e sexualidades segue sendo escrita por aquelxs que, de alguma forma, transitam pelas margens da história.

Texto: Babi

Fonte da imagem: https://www.diariojornada.com.ar/226601/sociedad/historias_minimas__las_putas_de_san_julian/

 

Fontes:

BAYER, Osvaldo. La Patagonia Rebelde. Biblioteca argentina de historia y política: Epub Libre, 2018 [1980]. Disponível em: https://archive.org/details/LaPatagoniaRebeldeOsvaldoBayer. Acesso em 13 de fevereiro de 2022.

La Protesta. Disponível em: https://americalee.cedinci.org/la-protesta-1917-1926/. Acesso em 13 de fevereiro de 2022.

Referências Bibliográficas:

BARRANCOS, Dora. Mujeres em la sociedad argentina: una historia de cinco siglos. Buenos Aires: Sudamericana, 2010.

ETCHENIQUE, Jorge. Pampa Libre. Anarquistas en la Pampa argentina. Santa Rosa: Editorial Nexo-Amerindia/ Universidad Nacional de Quilmes, 2000.

LAVRIN, Asunción. Mujeres, feminismo y cambio social em Argentina, Chile y Uruguay 1890-1940. Santiago de Chile : Dirección de Bibliotecas Archivos y Museos, Centro de Investigaciones Diego Barros Araña, 2005.

Esse texto foi escrito no verão de 2022, lua crescente, em Sistema Operacional Linux com programa editor de texto de licença livre de código aberto.

[1] Ao ler algumas edições de imprensa anarquista da época das Putas, vemos que toda a escrita é feita no masculino, salvo raras exceções que incluem as mulheres companheiras, considerando o de binarismo de gênero de cem anos atrás e que, ao menos em contexto brasileiro, escrever os pronomes de maneira inclusiva ainda pode ser um desafio. Também podemos ler nas páginas de um notável jornal anarquista vários termos sexistas para qualificar atitudes nas análises sobre o cotidiano, como virilidade e até a crítica ao povo feminino y servil (La Protesta de 1º de mayo de 1920, p. 3). Passado um centenário, ainda hoje há uma série de desafios para lidar com os machismos e misoginia de homens anarquistas hétero-cisgênero que, muitas vezes, ocupam lugares de destaque em meios organizativos, de formação e de difusão das ideias libertárias.